Myrna Silveira Brandão, de Berlim
“Cartas da Guerra”, de Ivo M. Ferreira, marcou a representação portuguesa na 66ª edição do Festival de Berlim. O filme é a adaptação para o cinema do livro “D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra”, que reúne as cartas escritas pelo famoso autor português António Lobo Antunes à sua mulher Maria José, a partir de um cenário de guerra colonial vivido em Angola entre 1971 e 1973. Na época, ele era um jovem alferes e médico de 28 anos.
O elenco inclui atores portugueses e angolanos. O escritor é vivido pelo ator Miguel Nunes e sua mulher Maria José é interpretada pela atriz Margarida Vila-Nova, (esposa de Ferreira), que no filme faz a voz in off, lendo trechos das cartas.
Em entrevista ao LABORATÓRIO POP, Pereira falou sobre a origem do filme, os aspectos políticos e o tom narrativo que imprimiu à história.
Como descreve “Cartas da Guerra”?
“É um filme sobre a interrupção abrupta da vida de um jovem. É também sobre a guerra colonial que resgata, de alguma forma, um episódio da nossa história recente que foi, de certa maneira, apagado com a Revolução. Há um patrimônio humano que absolutamente me interessava tratar. É um filme sobre pessoas durante a guerra colonial”.
É visível o aspecto político, de forma às vezes implícita e outras explicitamente. A ideia era essa desde o início?
“Sim, me interessava trabalhar também o lado político: a guerra colonial. Nas cartas fica evidente que há uma mudança, um crescimento político. O jovem médico António é obrigado a deixar Lisboa, sendo um intelectual e tendo uma bagagem absolutamente impressionante e invejável em termos de literatura. Há uma tomada de posição política em relação à guerra, à estupidez, à injustiça absurda de atirarem estes jovens para uma situação que eles nem sequer sabiam para o que é que iam”.
O filme é fiel ao livro ou segue uma narrativa própria?
“A estrela polar são as cartas da guerra. Mas não é só isso, há um aspecto, talvez o mais importante que é o fato de haver um homem que está crescendo, mudando no contato com o cenário (de guerra), e um escritor que está nascendo. Existiam estas linhas de força que me fizeram acreditar que eram alicerces para poder construir uma narrativa sólida”.
O filme navega em vários gêneros. Qual sua definição: é um filme de guerra? é um filme de amor? é um filme político?
“Não sou muito ligado em gêneros, é um pouco de tudo isso, mas é também muito mais. Embora seja um filme onde a ação se passa em 1972 e de ser um filme biográfico de um dos maiores escritores portugueses, não deixo de sentir que é um trabalho sobre nós (os portugueses), e sobre hoje, porque o ponto de vista é o de hoje. É mais importante para mim este escavar no passado, enquanto pulsão de reflexão sobre nós e sobre o presente. Além de tudo, estamos falando de um período que não tem sido tão retratado: a guerra colonial, 40 anos depois”.
Houve preocupação para abordar o tema e também com a repercussão?
“É um projeto cheio de singularidades. É adaptação de uma obra que constitui o passado biográfico de quem não só ainda pertence ao mundo dos vivos como se agigantou na esfera pública. O filme tem como ponto de partida questões muito sensíveis e delicadas. São cartas escritas por alguém que na época era um jovem, que estava pensando em escrever o seu primeiro livro, mas que hoje é um dos escritores portugueses mais lidos, traduzido e premiado”.
Quanto tem de envolvimento pessoal no filme?
“Embora eu não tenha tido qualquer experiência biográfica, família em África ou pai que foi para a guerra, a verdade é que a guerra vive comigo há quase uma vida, até pela opção dos meus pais, pelo exílio. Pessoalmente, queria muito entender como é que um país pode atirar seus jovens para uma situação que não faz sentido”.