Rodrigo Fonseca
Homenageado pelo Mix Brasil em 2017, Gus Green Van Sant Jr. não emplaca um sucesso há 10 anos: “Milk – A voz da igualdade”, que rendeu a Sean Penn seu segundo Oscar de Melhor Ator, foi o último trabalho mundialmente aclamado do diretor. Desde então, ele recebeu até vaias, em Cannes, onde consagrou seu nome como referência de experimentação há 15 anos, com “Elefante”, ganhador da Palma de Ouro de 2003. Foi vaiado lá na Croisette em 2015 por “Sea of trees”, drama de autoajuda que nem lançado no Brasil foi – só na TV. Essa sua atual vibe de autorreflexão, que anda com o realizador de 66 anos desde o subestimado “Restless” (2012), aqui traduzido como “Inquietos”, volta a dar as caras em seu mais recente exercício autoral de reflexão sobre a inquietude “A pé ele não vai longe”. Teve sessão dele nos festivais de Sundance, de Berlim (ovacionada) e do Rio. Faltaram prêmios pra ele, sobretudo para as atuações de Joaquin Phoenix (como um ás das HQs confinado a uma cadeira de rodas) e para Jonah Hill, em um desempenho magistral como guru dos Alcoólicos Anônimos. É uma atração que fecha com gala o pacote de lançamentos cinematográficos de 2018 em nossas telas. E traz em seu elenco rainhas do indie rock como Kim Gordon (do Sonic Youth) e Beth Ditto, do The Gossip, uma militante contra a gordofobia e a homofobia. Elas integram o grupo de AA do longa-metragem, baseado em uma dolorosa, mas edificante, história real.
“Existe uma figura complexa na história pessoal de John Callahan, não apenas em sua batalha pela superação, mas pela maneira como seu desenho preservava uma ironia ao retratar seus demônios internos”, disse Van Sant ao Laboratório Pop em Berlim.
Garantia de choro, mas também de uma debate sobre a acomodação de cicatrizes, “A pé ele não vai longe” apara as arestas das trilhas estéticas de Van Sant após uma passagem pela TV, como diretor (“When we rise”) e produtor (“Boss”). No início de sua carreira, ainda nos anos 1980, com “Mala noche” (1986), ele trocou uma carreira na Publicidade por uma aventura no cinema pautada pela transgressão moral e pelo instinto de inclusão. Gravitou pelo arame farpado que define os diretores malditos com os cults “Drugstore cowboy” (1989) e “Garotos de programa” (1991) e, logo, abraçado pelo prestígio, bifurcou-se entre o risco dionisíaco e a lineraridade apolínea. Abriu, de um lado, uma veia de experimentação formal ancorada a inquietações diante do vazio existencial (“Paranoid Park”, “Last days”). Rasgou, do outro, uma veia mais clássica de dramas edificadores, sobre superação (“Encontrando Forrester”, “Sea of trees”). Mas há ainda na relação deste fotógrafo e cineasta com a imagem uma terceira via, a biográfica, para a qual ele carrego um pouco de experimentalismo de seus filmes ensaísticos e muito da sobriedade de seus filmes mais lineares. O já citado “Milk” vai por esse tom, assim como “A pé…”, uma releitura do livro “Don’t worry, he won’t get far on foot”, do cartunista John Callahan (1951-2010). É ele que Phoenix interpreta em cena, cheio de som e de fúria. No filme, as pernas de Callahan perdem o movimento após uma viagem com um motorista cheio de manguaça nas ideias, vivido por um inspirado Jack Black. Rooney Mara vai entrar em cena lá pelo meio do longa como o anjo da guarda que cai de amores pelo traço e pelos beijos do mito do cartum.
Em “Milk”, ele brincava com a linguagem do Super-8. Aqui é com a estética do quadrinho. O uso de vinhetas, baseadas nos desenhos de Callahan, traduz o espírito garimpeiro do diretor, aqui mais contido, a serviço de uma dívida com um velho amigo. Há tempos, Robin Williams (1951-2014), a quem ele dirigiu no seminal “Gênio indomável” (1997), quis levar às telas a história de Callahan, alcoólatra que foi confinado a uma cadeira de rodas após um desastre rodoviário, tornando-se um ás do cartum. Williams queria produzir, tendo um famosíssimo cadeirante, seu querido amigo Christopher Reeve (1952-2004), o eterno Superman, no papel central. O projeto não aconteceu quando Williams queria, mas o pedido daquele grande ator nunca saiu da cabeça de Gus, que enfim, há um ano, tirou do papel a jornada de Callahan para sair do Inferno da autocomiseração pela arte. As filmagens ocorreram no Oregon e na Califórnia. O custo de produção beirou US$ 7,5 milhões, tendo Danny Elfman à frente da trilha sonora. “Ele é um colaborador próximo, atento, que complementa minhas necessidades estéticas”, disse o cineasta.
Há um apuro na direção de fotografia de Christopher Blauvelt (que foi cameraman em “Velocidade máxima”) para diluir a gradação das cores: quanto mais sereno o protagonista fica, mais suave é o colorido. A montagem do longa, feita pelo próprio Gus com David Marks, dilui a linha conversadora adotada pelo cineasta, a fim de respeitar a linha memorialista que seu personagem (real) deixou impressa em sua autobiografia. O uso de tiras de HQ e a fusão de alucinações com situações do dia a dia de Callahan salva o longa da burocracia. E há um combustível poético singular na presença de Jonah Hill, que quase ofusca Phoenix – um feito para poucos. É um Van Sant nas raias da doçura. Um Van Sant leve, mas necessário.