RODRIGO FONSECA
Não restam dúvidas de que a mais catártica experiência do Festival de Cannes 2024 até agora foi “Megalópolis”, o “Idade da Terra” de Francis Ford Coppola. Quem dele esperava um novo “O Poderoso Chefão” recebeu um exercício glauberiano de reflexão sobre as falências da América, disfarçada de Império Romano em plena Nova York. Giancarlo Esposito engole Adam Driver no papel do prefeito Cícero, que bate de frente contra seu rival, César, na construção de uma cidade perfeita. Existem outros males para serem sanados, sugere Coppola, em sua narrativa extravagante, por vezes cafona, mas muito poética. Curiosamente, um colega dele de geração, de Nova Hollywood ou de Easy Rider Generation, o diretor Paul Schrader, foi quem deu à maratona cinéfila da Croisette seu concorrente mais “redondo”, mais bem aparado: “Oh, Canadá”. Um Richard Gere devastador interpreta um documentarista que, às portas da morte, decide contar seu passado para uma equipe de cinema. O papo deveria girar em torno do fato de ele ter desertado na época da Guerra do Vietnã e fugido para terras canadenses. Mas no que ligam a câmera, sua imaginação e sua memória entram em fricção.
O outro momento inesquecível deste festival se remete à mostra Un Certain Regad, onde o belo “On Becoming A Guinea Fowl”, de Rungano Nyoni, passa por sobre a concorrência como um trator. Mais badalada das representantes da África no Festival, esta fábula sombria da Zâmbia marca a volta da diretora de “Eu Não Sou Uma Bruxa” (2017). Rungano nos leva aos bastidores de um enterro, no qual a despedida de um tio provoca uma surreal transformação numa família.
Igualmente impressionante é o filme póstumo de Jean-Luc Godard (1930-2022): “Scénarios”. Um dia antes de morrer, o diretor de “Acossado” (1960) deixou finalizado um curta de 18 minutos sobre gêneses e declínio, partindo da espiral do DNA.
Falando de artesãos autorais, Rithy Pahn surpreendeu mais uma vez, agora fazendo ficção, com “Rendez-vous Avec Pol Pot”, tendo Irène Jacob numa trama sobre o genocídio no Camboja no fim do anos 1960. Para este domingo, a aposta é “Le Procès du Chien”, comédia de Laetitia Dosch sobre o julgamento de um cãozinho.