RODRIGO FONSECA
Ao encerrar sua 45ª edição, entregando a Pirâmide de Ouro Pyramid, ao romeno Bogdan Mureșanu e seu estonteante “The New Year That Never Came”, o Festival do Cairo reservou um espaço nobre para honrar o Brasil coroando duplamente “Malu”, de Pedro Freire, hoje em cartaz no Estação NET Rio e no NET Gávea. A produção conquistou a Pirâmide de Bronze, troféu dado para filmes de estreia em longas, e a láurea de Melhor Atriz, entregue à mineira Yara de Novaes. Sua atuação vem sendo um ímã de vitórias por onde o filme passa.
Graças a uma delicadíssima operação de lançamento, que mobilizou o Grupo Estação em peso, “Malu” tornou-se um case de sucesso no Brasil, a lotar salas besuntado de críticas elogiosas, chancelado por prêmios diversos. Freire, seu diretor, passou a trilhar um caminho exitoso a partir da projeção desse delicado drama – inspirado em sua mãe, a atriz Malu Rocha (1947-2013) – no Festival de Sundance, nos EUA. É um espaço onde o Brasil raramente aporta.
Muito antes, em 2009, um curta-metragem, “O Teu Sorriso”, exibido no Festival de Veneza, fez de Freire um talento reconhecido e elogiado. Naquele pequeno grande filme com Juliana Carneiro da Cunha e Paulo José (1937-2021), ele deixou evidente toda sua destreza para lidar com o lugar da palavra na tela grande, com habilidade para domá-la sem o temor que muitos têm. Provou ser capaz de extrair dos verbos, dos substantivos, dos advérbios (sobretudo os adversativos) e dos adjetivos (raros) uma poesia que transcende limites semióticos.
O verbete “mãe” é o termo mais espinhoso de seu “Malu”, ganhador do troféu Redentor de Melhor Longa de Ficção do Festival do Rio 2024 (em empate com “Baby”). Saiu do Odeon com mais três láureas. Ganhou ainda o Prêmio Paradiso, na Mostra de São Paulo.
O desafio que Freire encara, ao driblar excessos melodramáticos, é alargar a fronteira desse signo, “mãe”, grávido de muitas renúncias e de muitos complexos ao retratá-lo pelo prisma do companheirismo, sentimento que encontrou um cronista singular num cineasta estrangeiro de quem é fã: o americano John Cassavetes (1929-1989). Ele filmava em patota (com Ben Gazzara, Seymour Cassel, Peter Falk e sua diva, Gena Rowlands) falando de sempre amigos, o que se confere em “Maridos” (1970), embora tenha também assuntado dilemas maternais em “Glória” (ganhador do Leão de Ouro veneziano de 1980). Era também corajoso no trato com o verbo falado, sem pânico da verborragia.
No script que lhe rendeu o Redentor de Melhor Roteiro da Première Brasil, Freire parece ter tomado emprestado de seu ídolo ecos de “Uma Mulher Sobre Influência” (1974) na hora de compor a Comédia Humana retratada da Malu vivida por Yara. Assim como na pérola cassavetiana, há, em seu longa, uma fúria feminina que se descontrolou (ou foi descontrolada) por vetores da vida: escolhas ruins, fracassos, recuos e recusas. Malu é uma atriz de passado glorioso, que se vê presa em um caos sentimental. Leva uma relação nada serena com sua mãe conservadora e com sua filha adulta, interpretadas respectivamente por Juliana Carneiro da Cunha e Carol Duarte, ambas agraciadas com o Redentor de Melhor Interpretação Coadjuvante no Rio. Essa dupla via de estresse torna sua crise – e sua sensação de falta de pertencimento – ainda mais aguda. Um amigo de Malu, Tibira, vivido por Átila Bee, é testemunha dos vulcões que a cercam.
As três atrizes resguardam muita coisa espinhosa em silêncios crepusculares, mas despejam rancores em desabafos que explodem na telona. Cada sílaba regurgitada por elas é uma navalha. Freire não poupa as consoantes e as vogais. Elas funcionam como uma sinfonia de lamentos até de desenharem como um cântico de reconciliação, a ecoar angústias. A fotografia de Mauro Pinheiro Jr. segue a linha temperada de luz típica de um fotógrafo que sabe colorir sobriamente tramas sobre asperezas afetivas.