Rodrigo Fonseca
A cada hiato entre os longas-metragens que roda (num intervalo de dois ou três anos) e entre seu trabalho no comando do recém-formatado Pingyao International Film Festival (PYIFF), Jia Zhangke canaliza as inquietações que fizeram dele um dos mais celebrados diretores hoje em atividade no cinema autoral em curtas-metragens. “Bucket”, uma história de mãe e filho de 6 minutos, filmada num i-Phone, é o experimento mais recente do realizador chinês de 48 anos, ganhador de prêmios cobiçados como o Leão de Ouro de Veneza (conquistado em 2006, com “Em busca da vida”) e a láurea de melhor roteiro do Festival de Cannes (dada a ele em 2013 por “Um toque de pecado”). Seu curta já foi disponibilizado na web. Já seu longa mais recente, “Amor até as cinzas” (“Ash is the purest white”), estreia no Brasil nesta Semana Santa, sob um mar de elogios da crítica. Merecidos. Quem lança é a Imovision.
“Há tempos, desde que as câmeras digitais apareceram, eu coleciono imagens do cotidiano e faço algo com elas, seja pequenos filmes, seja um arquivo de memórias afetivas que, algum dia, serão anexadas à minha dramaturgia”, disse Jia ao Laboratório Pop em Cannes, em maio, quando fez parte da disputa pela Palma de Ouro com a saga de empoderamento de Qiao, signo vivo do pleito contemporâneo pelo empoderamento feminino.
Interpretada de modo impecável por Zhao Tao, ela é a protagonista de “Amor até as cinzas”, cujo prestígio cresceu após ter colecionado nove prêmios internacionais, nos últimos onze meses, entre eles o troféu de melhor direção no Festival de Chicago. Zao Thao também saiu de lá premiada pela forma como delineou as angústias de Qiao. Na trama, a personagem é namorada de um gângster, a quem dá ajuda em uma série de pequenos golpes. Mas ela vai ter sua vida virada do avesso como paga por esse amor ilegal. Mesmo assim, não vai desistir de seus sentimentos nem das certezas que a levam adiante.
Na entrevista a seguir, Jia – que teve sua vida documentada pelo carioca Walter Salles em “Um homem de Fenyang”, em 2015 – faz uma reflexão sobre a natureza híbrida entre fato e fábula de suas narrativas.
Que mundo é esse que produz uma figura aguerrida como Qiao?
Jia Zhangke: O mundo que me interessa é o das conexões que nascem da exclusão. Tenho o olhar voltado para periferias do poder e da mídia onde as pessoas se juntam a fim de resistir à pobreza, à invisibilidade. Tento entender o afeto que nasce dessa união.
Com um misto de ação, drama romântico e fantasia, “Amor até as cinzas” depura o seu tráfego por gêneros, mas ainda preserva uma mirada documental sobre a China. Que tipo de realismo nasce dessa sua estética de muitas facetas, que se apega a fatos do dia a dia?
Jia Zhangke: No fim dos anos 1990, eu saí pela China com uma camerazinha na mão de olho nas celebrações e nas expectativas acerca da virada do milênio. Observei e registrei as formas mais variadas e espontâneas de se lidar com a passagem do tempo, com o cotidiano. Voltei a essas imagens tempos depois e descobri muitas coisas, sobre a China e sobre mim, entre elas a sensação de que o Tempo está passando, pro país, pra mim. Estou ficando mais velho, o que me dá mais distanciamento em torno do meu próprio processo e dos meus anseios. Talvez essa virada tenha me aproximado mais de histórias conectadas a emoções, histórias que as pessoas chamam por aí de melodramas, mas que eu tenho a tendência de não classificar. Antes, meu cinema era construído em forma de crônicas sobre a relação do indivíduo versus a sociedade ou do indivíduo em contraste com a natureza. Chegou a hora de eu falar sobre o choque de indivíduo contra indivíduo. Há gângsteres em “Amor até as cinzas”. Mas eu os vejo como sobreviventes, como amigos que criam relações para aguentar as transformações sociais do seu espaço e do seu tempo. O realismo está no corpo a corpo com essas afetividades.
Qual é a ideia de real que norteia a sua estética?
Jia Zhangke: Seja fato, seja fábula, toda narrativa que faço é um documento sobre a China e sobre o Tempo. Retrabalho na ficção situações que eu observo nas ruas. Se eu não tivesse essa verve documental, meus diálogos, nos roteiros que escrevo, teriam muita precariedade: eles são escritos a partir das vivências que eu observo.
Seus curtas, em geral, ganham visibilidade na internet, ao alcance de todos os cinéfilos. Mas de que maneira os chineses têm acesso aos seus longas. “Um toque de pecado”, ao qual Spielberg deu um prêmio de melhor roteiro quando presidiu o júri de Cannes, em 2013, sofreu boicotes do governo da China. Como é sua liberdade?
Jia Zhangke: Muita gente lá vê meu filmes em vias piratas, em downloads. Em cidadezinhas pequenas, do interior da China, “Um toque de pecado” chegou a passar na TV a cabo. Há alternativas. Houve um tempo, lá pelos anos 1980, em que o cinema chinês era cercado por uma aura de mistério, que fascinava as pessoas por seu exotismo. Driblamos essa dimensão etnográfica de estranheza e emplacamos muitos longas, de diretores diferentes, em muitas mostras pelo mundo. Isso ensinou às pessoas meios diferentes de chegar até nós, ainda que via internet.
Existe uma China idealizada no seu cinema?
Jia Zhangke: Jamais. Existe o viver. E existe a busca por um caminho do meio, entre a pós-modernidade e a tradição, entre a ancestralidade e a tecnologia.