Rodrigo Fonseca
Laureado com a Palma de Ouro de 2018 e indicado ao Oscar com “Assunto de família”, o autoralíssimo diretor japonês Hirokazu Koreeda já é de casa. Freguês da Mostra de São Paulo, onde já visitou com pompas de convidado de gala, ele é louco para fazer um filme sobre a colonização nipônica no Brasil e sabe que, toda hora, tem um filme novo dele em nossas telas. Dramalhões como “Ninguém pode saber” (2004) e “Pais e filhos” (2013) lotaram cinemas no circuito nacional de arte. O trabalho mais recente dele a aportar na TV a cabo no Brasil é “O terceiro assassinato” (“Sandome no satsujin”, 2017), já na grade do Telecine. Quem zapear o Now! ou o Telecine Play vai poder conferir este suspense de tribunal. Tenso, mas sem perder a elegância, o longa-metragem indicado ao Leão de Ouro de Veneza, onde foi considerado um óvni na tradição de melodramas desse cineasta nascido em Tóquio há 56 anos. Acostumado a falar de abandonos, desapegos e conexões afetivas seja pelo sangue, seja pela criação, ele investe aqui no medo.
“Esse filme surgiu a partir de uma conversa com um amigo advogado que me contou o quão difícil é lidar com a ideia de ‘verdade’ nas cortes japoneses: muitos crimes, lá, não são decididos por culpa ou inocência, mas por conveniência. Os conflitos de interesse regem as nossas leis”, disse Koreeda ao Laboratório Pop durante o Festival de San Sebastián, na Espanha, onde este longa-metragem foi ovacionado. “Pensei num enredo onde alguém decidisse usar a corte para fazer valer a veracidade dos fatos e não as convenções sociais ou morais do meu país. Existem questões de classe e existem questões da Justiça”.
Imortalizado por Gregory Peck em “O sol é para todos” (1962), de Robert Mulligan, e por Jeff Daniels na Broadway, Atticus Finch, advogado idealista que encara o determinismo racial do Alabama, é a figura que mais vem à mente a cada rompante do jurista Shigemori em “O terceiro assassinato”, ressaltando o rigor dramático do ator Masaharu Fukuyama. A relação entre ele e o acusado Musumi (Koji Yakusho) é pautada por um ideal de Bem que parece não ter espaço na geopolítica do Japão – pelo menos, não nos tribunais. Era assim com Finch e seu cliente. A retidão do americano era plena, apolínea. A de Shigemori é torta, mas igualmente apaixonada.
Para Shigemori, ajudar Musumi é uma reação a um sistema enferrujado, o que demonstra idealismo. Mas sua obsessão quase incontornável, no esforço para enxergar contornos na linha reta do crime, revela uma falha trágica essencial, uma imperfeição no ofício que encampou. Esse desenho, potencializado pelo olhar vítreo de Fukuyama, ajuda a desenhar um personagem tridimensional, cuja complexidade existencial caminha para o heroísmo. É o protagonista mais complexo da obra de um cineasta que adotou a perda que objeto de estudo.
Em todos os filmes de Hirokazu Koreeda (a partir de “Depois da vida”), perde-se algo. Por vezes, perde-se um amor; por vezes, o domínio da razão; e até a vaidade, como se vê em “O terceiro assassinato”, um ensaio sobre a Moral fantasiado de thriller, com um dispositivo filosófico bem próximo ao que o mestre do suspense jurídico, o francês André Cayatte (“Somos todos assassinos”) adotava: a relativização de certezas. Pouco importa por que Musumi pode ser condenado. Importa mais os vetores sociais que exigem sua presença numa corte. É mais um filme sobre perversões políticas da sociedade do que sobre perversões patológicas da psiquê. Mas é conduzido com a elegância de um clássico e com a verticalidade do cinema moderno.
O maior mérito formal de “O terceiro assassinato” está no dinamismo de sua montagem, cuja assinatura é do próprio Koreeda: fatos vão e voltam, revirados numa narrativa ruminante, que masca fatos várias vezes oferecendo a plateia diferentes pontos de vida. A música de Ludovico Einaudi pontua a tensão, ajudando um mestre do melodrama a brilhar na gramática policial.
A partir de 1995, quando estreou na ficção com “A luz da ilusão”, Koreeda dirigiu onze longas pautados pela invenção, e fez mais um punhado de documentários e telefilmes. Poucos diretores são mais prolíficos de que ele, laureado com 38 prêmios internacionais por seu feitos nas telas. Ele já foi comparado a um dos mais festejados cineastas de seu país, Yasujiro Ozu (1903-1963), de “Dia de Outono” (1960). Mas ele tem outras referências entre diretores autorais: de um lado, o inglês Ken Loach (de “Eu, Daniel Blake”) e, do outro, seu conterrâneo Mikio Naruse (“Correnteza”), ambos cronistas da luta de classes. “Mas a influência mais ativa em mim eram os filmes com as atrizes Ingrid Bergman, Joan Fontaine e Vivien Leigh de que minha mãe gostava”, disse Kore-eda. “Vi a maioria deles na TV, porque não tínhamos dinheiro para pagar ingressos. Hoje, meus pais já se foram. Eu virei pai. E cultivo as lições sobre as lacunas que ausência de pessoas amadas deixam em nós. A ausência da verdade também gera lacunas”.
Koreeda finaliza agora “The thruth”, um drama falado em Inglês com Catherine Deneuve, Juliette Binoche, Ethan Hawke e Ludivine Sagnier. Juliette é a filha de La Deneuve na trama e esta interpreta uma atriz às voltas com um filme sci-fi no qual encarna uma mãe que não pode envelhecer.