Rodrigo Fonseca
Um dos frutos mais suculentos da estética do assombro, que hoje alimenta o cinema nacional e já nos deu frutos preciosos como “A sombra do pai”, “Animal cordial” e “Morto não fala”, o autopsia em corpo vivo da geografia carioca “Mormaço”, de Marina Meliande, que estreia hoje no Rio, deu um sacode nos olhares da Holanda em sua primeira projeção mundial, em 2018, em Roterdã. Existe uma direção de atores surpreendente no arranjo narrativa de uma cineasta (conhecida pelo lúdico “A Alegria”, rodado em parceria com Felipe Bragança) que usa uma espécie de funcionalismo para dissecar as podridões dos órgãos de uma cidade aberta (e partida socialmente). O desempenho feérico de Marina Provenzzano como a protagonista – Ana, uma advogada em prol de uma causa de remoção da Vila Autódromo que vai adoecendo com uma moléstia dematológica inexplicável conforme a burocracia municipal e o desmantelo predial avançam – é a espinha dorsal da exumação moral empreendida por Meliande. À época da passagem pelo evento holandês, a cineasta explicou que “o filme começa realista e ganha ares fantásticos, de cinema de horror”. Lembra o Polanski de “O inquilino” (1976).
Na passagem por lá, Marina disse que, em Roterdã, ele foi definido como “body horror”: “Há uma metamorfose do corpo. Ele é uma mistura de narrativa social realista com algo de ‘A Mosca’, só que não tão nojento. O corpo tem uma ligação com a cidade, que está doente. O filme faz uma ponte com a atual crise do estado do Rio de Janeiro” diz a diretora, que foi laureada com uma menção honrosa no Festival do Rio.
Durante o trabalho de pesquisa para “Mormaço”, Marina tomou conhecimento da Vila Autódromo, uma comunidade localizada em frente ao local onde seria construído o Parque Olímpico, cercada pela Barra da Tijuca e que despertava interesse comerciais da especulação imobiliária do Rio de Janeiro. Por conta disso, a Vila Autódromo foi incluída como moeda de troca na negociação do prefeito com as construtoras responsáveis pelo projeto do Parque Olímpico, para que ficassem com esse terreno. Porém a Vila Autódromo tinha dono e os moradores eram uma comunidade legalizada, que não podia ser removida de uma hora para outra. Imediatamente Marina incorporou o local à sua trama.
“O Rio das filmagens foi o de 2016. Filmamos entre março e abril daquele ano e era um RJ que ainda vivia a euforia das Olimpíadas, propagada pelas grandes mídias e pela Prefeitura. Era difícil naquele momento criticar a Prefeitura pois era como se você estivesse jogando contra o governo. Mas, ao mesmo tempo, a Prefeitura agia violentamente contra algumas comunidades e espaços públicos urbanos. Era uma situação de bastante tensão. Foi um pico de tensão na Vila Autódromo, com ameaças de remoção mais violenta. Era um Rio que tentava simular uma sensação de tranquilidade e segurança pública, pois iríamos sediar os Jogos Olímpicos e nada poderia sair do lugar. Era uma falsa sensação de pacificação de um lado e intensos conflitos de outro”, diz Marina. “O RJ que recebe o filme agora é de crise política e econômica profunda, onde a gente tem nossos últimos governadores na prisão, deixando claro as negociatas que foram feitas no último governo, incluindo algumas para que os Jogos Olímpicos fossem feitos, inclusive com grandes construtoras. Estamos pagando essa conta. A crise não é só por conta das Olimpíadas, mas elas demandaram um investimento enorme. Num primeiro momento, elas geraram bastante emprego, mas hoje há uma crise nesse setor. Enfim, o Rio que nos recebe não é, nem de perto, aquele que receberia uma herança benéfica desses jogos”.
Entre as múltiplas virtudes de “Mormaço”, destaca-se o desempenho dionisíaco de Pedro Gracindo como um arquiteto e músico que mistura Ramones com Ogum em seu roquenrol caboclo e Analu Prestes (a eterna A$$untina das Amérikas) no papel de uma moradora que não deseja deixar seu edifício, ameaçado de ser removido por conta das obras para as Olimpíadas. A fotografia de Glauco Firpo e a engenharia de som (impecável) de Valéria Ferro valorizam as cicatrizes do real em volta de um miolo sobrenatural que leva o filme à seara do medo. A poeira e um mar de folhas secas são a medida de uma humanidade massacrada pela lógica burocrática das mecânicas municipais de controle e opressão.