Rodrigo Fonseca
Forças das trevas de DNA brasileiro estão invadindo a Netflix: “Mal Nosso” chegou ao serviço de streaming para demarcar a potência criativa do cinema nacional. Originalidade é a palavra mais adequada à definição dessa produção que viajou por 20 festivais internacionais, incluindo as mais prestigiadas vitrines estrangeiras para o cinema de terror e fantasia (Sitges, Buenos Aires Rojo Sangre e Night Visions), arrebatando elogios gringos, mesmo tendo sido feito com tostões, em Ribeirão Preto (SP). Toda a tradição de fantasia sobrenatural, que vai de Georges Méliès em 1901 a M. Night Shyamalan em “O sexto sentido” (1999), passando pelo Brian De Palma dos anos 1970, ecoa nesta trama sobre exorcismo e vingança, protagonizada por um homem que fala com os mortos e pelo assassino de aluguel que ele contratou para uma tarefa de extrema-unção. Nenhum longa-metragem nacional lançado de janeiro pra cá tem uma precisão tão cirúrgica na condução dos planos (e na construção crescente do suspense) como se vê aqui, no trabalho do estreante Samuel Galli, também autor do roteiro. Tem algo em sua técnica que evoca o Kurosawa de “Yojimbo” no jogo que se estabelece entre olhares e objetos, num balé que mantém o clima de tensão na altura máxima. Os movimentos de câmera disfarçam até as contenções do elenco. A trama narra a imolação de Arthur (Ademir Esteves), um pai devotado à sua filha de 19 anos, que recorre aos serviços de um matador por razões pouco explicadas. Chama atenção a coragem dele no trato com Charles (Ricardo Casella), o tal profissional da execução sumária. Depois que o “serviço” é feito, Charles vai escutar as razões de Arthur numa conversa em que Galli abre a Caixa de Pandora do horror, libertando um demônio cheio de brasilidade e um fantasma com feições de palhaço. Na atual safra do terror nacional, este é o que melhor lida com o lúdico e com a fantasmagoria da imaginação.