Rodrigo Fonseca
Patrimônio vivo do teatro brasileiro, Felipe Hirsch está no páreo do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, a ser entregue no dia 14 de agosto, no Teatro Municipal de São Paulo, com “Severina”, que pode dar a ele o prêmio de melhor roteiro adaptado. É um filme que acende várias luzes sobre os conflitos sociais das Américas.
Múltiplas peças, a partir de “Baal Babilônia” (1993), fizeram de Carlos Felipe Lopes Werneck Hirsch um dos mais necessários encenadores do teatro brasileiro. Filme, ele só dirigiu dois, sendo que o primeiro foi em parceria com a colega cenógrafa Daniela Thomas: o rizomático “Insolação”, de 2009. Mas há um espetáculo dele que dialoga de maneira mais direta – mais até do que seu longa-metragem anterior – com “Severina”, o mais recente exercício desse diretor de CEP curitibano pelas veredas do cinema: a montagem de “Temporada de gripe”, de 2003. Nela, a partir de um texto de Will Eno, temos um ambiente hospitalar, num futuro sem emoções, onde um homem sem nome é internado com uma estranha doença: a paixão. Há um sintoma temático – e autoral – similar ao dessa peça no longa que Hirsch lança agora, filmado no Uruguai, em espanhol, numa troca criativa com o produtor do momento (Rodrigo Teixeira, de “Me chame pelo seu nome”). A paixão também adoece o protagonista desta inquietante história sobre Quixotes pós-modernos: bibliófilos que dão aos livros autonomia plena sobre sua existência, até uma Dulcineia de carne, osso e caráter duvidoso aparecer. No caso, Ana (Carla Quevedo), enigmática mulher cuja perversão é roubar livros e amolecer suas vítimas com sorrisos homicidas. O hospital aqui é uma Alexandria de esquina: uma livraria lotada de tesouros verbais.

Há aqui, nas garras de Ana, um Cavaleiro da Triste Figura, só que mais realista do que o nobre de La Mancha esquadrinhado por Cervantes: chama-se R. e olha para o mundo com a ressaca dos que escondem gigantes sob a forma de moinhos de vento no peito. R. é vivido por Javier Drolas, ator argentino de numerosas ferramentas dramáticas, ocultas sob suas feições de galã atormentado, à la Jean-Louis Trintignant (de “Um homem, uma Mulher”). Conhecemos ele de “Medianeras” (2011), um dos filmes de amor mais analgésicos desta década. Esse passivo dá à presença dele na love story gramatical de Hirsch um simbolismo latino (e um charme cinéfilo) a mais. R. é um livreiro e um rascunho de escritor, que ganha a vida da prosa alheia: vendendo romances e devorando poesias e ensaios. E tem direito a um Sancho Pança sem “mais valia” marxista: o amigo poeta vivido por um agrisalhado Daniel Hendler, o astro de “O abraço partido” (2014).

Magnética, a presença de Hendler costura pra dentro de “Severina” mais referências cinematográficas da América Hispânica ainda. E a chave é essa. Este é um filme sobre o imaginário literário e amoroso de um continente hablante da língua de Jorge Luis Borges: mas um imaginário que tenta transcender o melodrama. Não estamos diante de um folhetim regado a lágrimas, estamos, sim, numa América Latina de veias abertas, fria, cujas lágrimas secaram diante da falência econômica. De úmido só restou a saliva que rega as palavras.

Essa reflexão sobre a palavra como lugar de resistência chega ao roteiro de “Severina” a partir de uma conversa direta com a obra do escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa (autor de “Os surdos”). Essa conversa vira imagem a partir da fricção entre as reflexões existenciais de Hirsch e a mirada que o fotógrafo português Rui Poças (do ótimo “Zama”) tem sob a intimidade alheia. Juntos, diretor e fotógrafo atualizam a metáfora de Quixote para os nossos dias discutindo sobre a ilusão pelas vias do entorpecimento artístico e do confronto sem escudos com a realidade.