RODRIGO FONSECA
Amos Gitai foi visto pelo Lido na noite de sábado, embora não tenha filmes na programação do 76. Festival de Veneza. Ano passado, sim, ele teve dupla participação no evento, com projetos, ainda inéditos no Brasil, que ampliam sua forma de narrar por registros mais leves do que seu espírito combativo convencional.
Humor nunca foi o forte de Gitai, um dos mais controversos realizadores da História do cinema, reconhecido por filmes como “Kedma” (2002) e “Free Zone” (2005) como o cronista número de Israel quando o assunto é o conflito com os palestinos. Seu olhar crítico já irritou muitos, mas também encantou muita gente. Assim como sua veia cômica nunca foi exaltada, seu lado existencialista também não costuma ser muito reverenciado pelos críticos. Por esses dois pontos, sua passagem por Veneza, em 2018, com dois longas-metragens (ambos fora de competição) foi considerado um divisor de águas em sua prolífica carreira. Aos 68 anos, o cineasta – que, em 1973, foi ferido durante uma missão militar em um helicóptero, enquanto combatia na guerra do Yom Kippur – levou ao Lido a quase comédia (de tons documentais) “A tramway to Jerusalem” e o filme-poema “A letter to a friend in Gaza”. O primeiro,  é uma bem-humorada crônica de costumes sobre confusões do dia a dia dos israelenses no trato com seus vizinhos da Palestina. O segundo é uma carta filmada com base em textos de Albert Camus, Amira Hass, Emile Habibi.
“Tenho preparado novos filmes que mostram Israel como uma grande lata de sardinha na qual, mesmo apertados entre si, os peixes parecem não ser capazes de encontrar harmonia entre suas diferenças, a fim de melhorar o espaço para todos. Há tempos, eu venho dizendo que a mídia acaba fundindo as diferentes questões políticas que dividem Israel como se fossem uma questão só, apenas ligada a intolerância. Penso que o cinema é um meio modesto, mas necessário, de viabilizar um outro olhar para espaços que estão sufocados pela cobertura da imprensa, nas redes sociais”, disse o cineasta ao Laboratório Pop, em recente entrevista, complementando sua visão de mundo no Lido com um pleito sobre liberdade de expressão. “A maior homenagem que um artista pode fazer para o mundo contemporâneo é ser crítico a ele e, no campo do audiovisual, não confundir cinema com propaganda”.

Apesar de ser criticado por seu discurso pautado mais pela retórica do que pela dialética, Gitai surpreendeu Veneza por trazer narrativas pautadas pela leveza. “A tramway to Jerusalem” impressionou pela fluidez de sua montagem ao retratar o cotidiano de Israel para além da tensão política. Já “A letter to a friend in Gaza” é marcado por uma delicadeza de tom filosófica numa discussão sobre angústia. “O individualismo espatifou as utopias”, disse o diretor, que criticou a política cultural de seu país por apostar em discursos de propaganda em nome de ideais de direita.

Na competição deste ano, hoje, domingão, é dia do novo Steven Soderbergh (“A lavanderia”), com Meryl Streep e Gary Oldman, e de “Wasp Network”, mais uma produção da RT Features, de Rodrigo Teixeira, que bombou por aqui com “Ad Astra”. A trama filmada por Olivier Assayas se baseia na luta de cubanos para desmobilizar células anticastristas a partir de uma rede de operações secreta na Flórida. Wagner Moura, em estado de graça, vive um deles. O enredo é retirado do romance “Os últimos soldados da Guerra Fria”, do mineiro Fernando Morais. Com uma estrutura de roteiro cheia de humor, focada na denúncia da retórica política da direita e da esquerda, a dramaturgia de Assayas esbanja domínio dos códigos narrativos audiovisuais da América Latina, com ecos da própria tradição de Cuba nas telas – o que surpreende, vindo de um realizador parisiense.
Os eventis cinéfilos de Veneza, em 2019, terminam no dia 7.