Tá todo mundo muito perdido na streaming esfera, cheio de coisa pra ver, mas com nenhuma curadoria para guiar nossas escolhas. É “Rambo: programado para matar” (1982) na MUBI, onde dá para ver a Palma de Ouro “Titane”, de Julia Ducournau, e o badaladinho “Aftersun”, de Charlotte Wells. É “Coração satânico” (1987), com um jovem (e ainda galã) Mickey Rourke na Amazon Prime. É o recém-lançado “Certas Pessoas” (“You People”) na Netflix, com Eddie Murphy. Tem de tudo e mais um pouco. E, vez por outra, aparece um daqueles cults que se candidatam à Eternidade, mas custam a alcançar a visibilidade necessária pro aplauso digno de sua potência. É o caso de “O Mensageiro do último dia” que a gente acaba de encontrar na grade da Star Plus. Taí uma plataforma, recheada de títulos da antiga FOX e de pérolas adultas da Disney, que merece uma atenção. Estruturado a partir de um clima de mistério crescente, galvanizado por uma sensação de claustrofobia, alimentada por uma engenharia de enquadramentos capaz de comprimir o mais aberto dos planos, “O Mensageiro do último dia” é uma injeção de vitalidade na cartilha dos thrillers. Renova especialmente os de flerte com o sobrenatural. É um filme capaz de evocar toda uma herança expressionista. “Dr. Mabuse, o jogador”, de 1922, da grife Fritz Lang, é a primeira referência que salta aos olhos frente à maneira como seu realizador e também (bom) montador David Prior trata com estranheza a geografia e a arquitetura da cidade de Webster Mills, Missouri, à sua volta. E olha que ele é um estreante na direção de longas, com uma vasta trajetória em documentários sobre bastidores de filmagens. Mesmo um simples plano aberto numa ponte parece uma pintura de Edvard Munch (tipo “O grito”), com uma luz sempre bruxuleada deformando o que aparenta ser só uma mirada realista. E cada distorção da fria paisagem urbana à nossa frente alimenta não só o suspense, mas a dimensão metafísica de um enredo sobre uma entidade capaz de se movimentar entre os espaços vazios da existências, em busca de hospedeiros. Contudo, não se trata de mais uma narrativa de invasão de corpos e de contágio, como “Alien” (1979) ou “O Escondido” (1987), e sim em um complexo estudo, por vezes, moral – realçado por sua forma nada usual -, sobre a presença do Mal entre nós.

Talvez só “O Homem de Palha” (1973) e “Possuídos” (1998) tenham sido tão assertivos quanto ele, em seu estudo sobre a manifestação de forças ocultas em práticas onde a conduta ética foi entortada. Afinal, é difícil definir o herói deste envolvente “The Empty Man” (título original do longa de Prior) como sendo um samurai de trilha respeitável. A palavra “torto” é um dos adjetivos essenciais à figura introspectiva do ex-policial Lasombra, vivido com empenho espartano por James Badge Dale (o colega de FBI de Matt Damon em “Os Infiltrados”). Sua atuação aqui é um achado. Na dublagem, Dale ganhou a voz de Nestor Chiesse. A cada movimento, em sua insistência no bordão “Eu venho de São Francisco”, como uma justificativa para sua aparente dureza, descobrem-se novos deslizes (ou melhor, novos resquícios de humanidade demasiada) em seu modo de agir na investigação do sumiço de uma jovem. Baseado em uma HQ de 2014 do Boom! Studios, assinada por Cullen Bunn, Vanesa R. Del Rey e Jesús Hervás, “O Mensageiro do Último Dia” toma seu título emprestado de um ente que se manifesta no longa, pela primeira vez, em um eletrizante preâmbulo de 22 minutos. É um trecho passado no Butão, em 1995, que destoa, à primeira vista, do tom soturno do resto da narrativa. Em meio a um ambiente de montanhas e quilos de neve, a fotografia de Anastas N. Michos se deleita no arejamento à sua volta e evita chiaroscuros, optando por clarões de luz. Ali, uma corriqueira trilha de turistas abre a brecha para a vida de um ser misterioso, ora representado numa pilha de ossos, ora numa figura disforme de carne e bile.

O que houve nos anos 1990, longe do insensato mundo urbano de Webster Mills, parece ser só uma aparição a mais do tal Homem Vazio, o Empty Man. Mas, no fim dos anos 2010, quando o eixo central do filme ocorre, o que se deu lá atrás, nas franjas do Himalaia, volta como vetor de empuxo de uma investigação com direito a um culto ao Além, a traições e uma sensação onipresente de medo. Sensação que Prior dirige com retidão, ambicioso para escavar novas fronteiras cinemáticas para um gênero guiado pela tensão. Tem ainda “O Bom patrão”, com Javier Bardem, uma joia de 2021, na grade do Star+.

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