RODRIGO FONSECA
Como foi bonito arrasta-pé da Rainha Diaba em Berlim. Desde a inauguração da 73ª edição do festival alemão, o longa-metragem finalizado por Antonio Carlos da Fontoura há cerca de 50 anos, com Milton Gonçalves (1933-2022) no papel de um chefão do crime queer, de identidade feminina, não sai das telas da Alemanha, refestelado na qualidade de sua cópia remasterizada. Exibido no Velho Mundo antes, pela primeira vez, na Quinzena dos Realizadores de Cannes em 1974, o thriller criminal do realizador de “Copacabana Me Engana” (1968) é um marco sobretudo no âmbito do filão policial latino-americano tanto na condução de ousadas sequências de ação quanto na investigação de práticas sociais à margem da moral do Brasil da ditadura militar.
Milton ganhou o troféu Candango de Melhor Ator quando Fontoura exibiu a produção no Festival de Brasília, em meados dos anos 1970. Sua trama foi estruturada pelo cineasta em dupla com o dramaturgo santista Plínio Marcos (1935-1999), autor de peças icônicas como “Dois Perdidos Numa Noite Suja” (1966). Em seu roteiro, somos levados ao quarto dos fundos de um antro de prostituição onde vive a Rainha Diaba. De lá, ela (como prefere ser chamada) controla com mão de ferro o crime organizado da cidade. Para evitar que um de seus mais fortes aliados caia nas mãos da polícia, Rainha Diaba encarrega o seu principal acólito, Catitu (Nelson Xavier), de inventar um bandido perigoso e entregá-lo à polícia no lugar do homem procurado. Catitu sai pelas ruas e encontra Bereco (Stepan Nercessian), um jovem sustentado pela cantora de cabaré Isa (Odete Lara). Ele atrai Bereco para uma série de crimes, projetando-o como um “bicho solto”. Nesse movimento, o império da diva criminosa entra em xeque.
Berlim teve a chance de ver as peripécias da Rainha Diaba graças à restauração (e criação da cópia em DCP 4K) realizada pelo festival pernambucano Janela de Cinema de Recife, numa parceria com a organização Cinelimite e o laboratório Link Digital/Mapa Filmes. Os materiais originais são provenientes do Arquivo Nacional e do Centro Técnico do Audiovisual (CTAv).
Na entrevista a seguir, Fontoura – cujo longa mais recente, “Somos Tão Jovens”, narra a imersão de Renato Russo no roquenrol – fala da representação da violência e da cultura LGBTQIA+ de sua Diaba.
Como tem sido o resultado afetivo e profissional de sua passagem pela Berlinale neste momento, na mostra Fórum, com um filme que celebra o seu sucesso como diretor – dez anos depois da estreia de “Somos Tão Jovens”, seu longa mais recente, de 2013? O que vem daí? O que vem por aí?
ANTONIO CARLOS DA FONTOURA: Afetivamente, não poderia ser melhor. Passei seis dias em Berlim. Fui cercado pelo carinho do time da Berlinale que escolheu o filme, dos organizadores do Fórum, do público entusiasmado que lotou as três salas. Enfim, fiquei encantado com a acolhida ao filme e ao meu trabalho como diretor. Dez anos depois de “Somos Tão Jovens”, voltar à cena com este filme criado há cinquenta anos, que para o público da Berlinale é meu mais novo filme, é mesmo fantástico. Por aí vem mais: “As Rainhas dos Bosque”, sobre a conquista do Bois de Boulogne, em Paris no início dos anos 1970, pelos travestis da Lapa. Aguardem.
Quais foram as reações maia surpreendentes das plateias de Berlim ao filme?
FONTOURA: Como o filme foi, pouco a pouco, tornando-se cult, assisti a muitas exibições da Rainha ao longo do tempo, em mostras, em festivais, nos cinemas. O que me impressionou mais nas sessões da Berlinale é que a plateia por lá na Alemanha, tão eclética e diferenciada, emocionou-se, assustou-se, riu, reagiu… tudo exatamente nos mesmos momentos das exibições anteriores, ao longo destas cinco décadas. Acho que isso quer dizer alguma coisa boa sobre o filme.
Olhando retrospectivamente para tudo o que Milton Gonçalves te deu nos sets, o que há de mais potente em sua atuação?
FONTOURA: Sendo o grande ator que é, foi Milton quem inventou a Rainha. Ele trouxe pra mim a Diaba pronta. Meu trabalho foi conduzi-la em cena e relacioná-la com os demais personagens. Ele foi um gênio generoso e criativo, que iluminou o filme com sua lâmpada.
Nesta sexta, a Berlinale confere o último dos 19 concorrentes ao Urso de Ouro de 2023: “Till The End Of The Night”, um policial noir germânico, pilotado por Christoph Hochhäusler. Até o momento os desenhos asiáticos “Suzume”, do japonês Makoto Shinkai, e “Art Gallery 1994”, do chinês Liu Jian, andam dominando as rodas de apostas, ao lado de “Past Lives”, de Celine Song, e “Afire”, de Christian Petzold. As láureas serão reveladas neste sábado, pelo júri presidido pela atriz Kristen Stewart.