Rodrigo Fonseca
Ativista da causa da perplexidade, ciente de nossa orfandade em relação à falência dos metadiscursos políticos que outrora explicavam e confortavam o mundo (o marxismo, o anarquismo, e até o socialismo cristão), “A fábrica de nada” enfim chegou à TV: no dia 18 de maio, às 11h20, o Telecine Cult exibe esta joia. Há nela uma costura de números musicais, de trechos documentais, de situações cômicas quase caricatas e de dramas realistas. Essa mistura feita pelo diretor lisboeta Pedro Pinho (de “As cidades e as trocas”) é das mais radicais – e, ao mesmo tempo, das mais harmônicas – que o cinema contemporâneo já viu. Daí a conquista do Prêmio da Crítica de Cannes, em 2017, concediado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci). Tudo neste filmaço português é registrado numa fotografia esmaecida. A câmera do fotógrafo Vasco Viana rejeita excessos de cor e luz. Tudo está esgotado, como o mundo. Existe um mote: a demolição da lógica fabril herdada dos 1800 e, até hoje, vigente, como um zumbi da História. Existe uma trama: um grupo de operários se encrespa com a administração de uma indústria de elevadores, ao flagrar a gerência está roubando máquinas e matérias-primas, e fazem um levante que tem um ônus – todos serão obrigados a permanecer em seus postos, no ócio, até as negociações para demissão coletiva saírem. Existe uma vivência: explicitado esse enredo, as tensões geram invenções, desde coreografias dos trabalhadores até digressões de teóricos. E, a um dado momento, brota uma frase romântica – “O filho da p… do amor, se for mesmo amor, é incondicional” – provando estarmos diante de um olhar terno sobre pessoas, e não de uma tese sociológica. E a montagem primorosa, assinada a seis mãos por José Edgar Feldman, Luisa Homem e Cláudia Rita Oliveira, galvaniza a poética de alarmismo de Pinho, gerando um centauro de fato e fábula cujo galope embatuca plateias. Na Croisette, há dois anos, o público da Quinzena dos Realizadores veio abaixo, numa ovação, quando um dos personagens do longa-metragem desabafa: “O mundo não se divide mais entre Direita e Esquerda, mas sim entre aqueles que se submetem e aqueles dispostos a abrir mão de seus sonhos, dos telefones celulares, das viagens à Lua”.

Pinho explicou os saldos estéticos de seu filme ao Lab Pop: “Fizemos cerca de 10 mil espectadores, o que é um sucesso para o padrão do circuito português, sobretudo na linha dos filmes de autor e, sobretudo, se você avaliar nossa duração. Existem 10.000.000 de Portugais no meu país, cada um com uma necessidade e com uma experiência pessoal muito particular com o mundo operário. Do momento em que nós escrevemos o roteiro de “A fábrica de nada” até esta semana, em que o meu filme estreia aí no Brasil, uma série de problemas de desajuste social que estavam acontecendo em Portugal se agravaram. E não foi só no meu país. Todas as aberrações políticas que ganharam peso nos últimos anos, como Donald Trump e o Bolsonaro, tiveram suas dimensões ampliadas. Daí eu ter uma história em que o crescimento da economia gera loucura coletiva“, disse o diretor à época da estreia do longa no Brasil, em 2018.”Existe uma analogia do filme entre a situação dos operários desmobilizados pela falência de sua fábrica e a crise criativa de um cineasta que está a fazer filmes. Existe um conflito interior em todos esses personagens, esses atores sociais. Esse conflito se reflete na minha vontade em experimentar diante da inabilidade que temos de lidar com a realidade à nossa volta. Daí a necessidade de se produzir um Frankenstein, um filme que está em permanente mudança, em metamorfose formal, como o Real“.