RODRIGO FONSECA
De todas as imagens lindas que fizeram de “Rio Zona Norte” (1957) um tratado sobre formas perféricas de se viver na metrópole que nos rodeia sob as bênçãos do Cristo Redentor, o sorriso de Grande Otelo na hora em que seu personagem faz duo com Ângela Maria é a mais possante síntese da transcendência de que o cinema nacional tem notícia. Um espírito similar ao daquela risada contagiou o Estação NET Gávea na noite de segunda-feira, durante a projeção de “A Festa de Leo”. A presença de Cacá Diegues na plateia, com o olhar de mestre marejado de orgulho, servia como ponte entre o passado neorrealista pré-moderno de nosso audiovisual (e com o Cinema Novo do “Cinco Vezes Favela de 1962) e o Presente. Um Presente que aponta o talento da dupla Luciana Bezerra e Gustavo Melo como trilha para um futuro. É o longa mais lúdico (e mais carioca) de toda a safra competitiva da Première Brasil 2023 até agora – o devastador “Ana”, de Marcus Vinícius Faustini, pode mudar tudo, nesta quinta. Mas há algo de pleno – e de preciso – no longa de Luciana e de Gustavo, a começar da formidável troca de passes entre duas atrizes em estado de graça: Cíntia Rosa (sublime) e Mary Sheila.
Parceiros em múltiplas ações, inclusive em “5 Vezes Favela – Agora Por Nós Mesmos” (2010), que Cacá produziu, Bezerra e Melo mostram que não apenas têm destreza para lidar com a gramática de um longa como também dominam rudimentos da História do Cinema. O filme deles é uma mistura de “Rio 40 Graus” com “Ladrões de Bicicleta”. A fotografia de Renato Falcão conversa atentamente com a centelha dionisíaca de tal tradição.
Cíntia é a vendedora de barraca de praia que passa por toda a sorte de percalços para garantir a seu filho um aniversário digno na celebração de seus 12 anos. Mas o pai viciado do garoto, Dudu (vivido por Jonathan Haagensen), vai dar trabalho para ela, com seus vacilos.
Numa direção firme, os realizadores apostam numa refrescante trilha de aventura para dar um equilíbrio pop a um (melo)drama social realista. Parceiro de Luciana no curta “Acende a Luz”, Márcio Vito rouba pra si cada sequência na qual aparece no papel do chefe da personagem de Cíntia.
p.s.: Um dos títulos mais preciosos deste Festival do Rio é o doc ensaio “Bye Bye Amazônia”. O Neville D’Almeida cheio de fúria, todo iracundo, de “Jardins de Guerra” (lá de 1969) dá o ar de sua graça de novo, num estudo sobre a sanha predatória do capitalismo contra os biomas do país.
p.s. 2: A maior revelação da Première Brasil até agora, na seção paralela Itinerários Únicos, é “Mulheres Radicais”, de Isabel De Luca e Isabel Nascimento Silva, em sua triagem de vozes da pintura, da escultura e da performance.