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Rodrigo Fonseca
Rodado em 1969, com Harry Dean Staton e Warren Oates no elenco, Lanton Mills completa 50 anos em 2019, o que totaliza cinco décadas de carreira para seu mítico realizador, o ermitão Terrence Frederick Malick, que, daqui a um mês, pode quebrar seu voto de reclusão e visitar o Festival de Cannes a fim de promover seu novo longa-metragem, A Hidden Life. As atrações do menu cannoise serão conhecidas no próximo dia 18. Tudo indica que a maratona cinéfila francesa, cuja 72ª edição está agendada de 14 a 25 de maio, vai servir de plataforma à estreia mundial do novo longa-metragem do diretor de A Árvore da Vida (Palma de Ouro de 2011). E ele deve passar pela Croisette em competição, uma vez mais. De verve transcendentalista, o cineasta se debruça uma vez mais sobre II Guerra Mundial – tema de seu aclamado Além da Linha Vermelha, Urso de Ouro de 1999 -, só que, agora, a batalha é vista sob a perspectiva do lado germânico não hitlerista. Chamada originalmente de Radegund, esta coprodução EUA e Alemanha tem como protagonista o ator August Diehl (de “O jovem Karl Marx”). Ele interpreta o fazendeiro austríaco Franz Jägerstätter, um mártir das lutas de oposição ao nazismo, que combateu o Eixo nas regiões rurais de seu país, mobilizando a juventude local. Estima-se que Lanton Mills possa passar em Cannes também, na seção de clássicos, onde se espera a projeção comemorativa do cinquentenário de Easy Rider.

Objeto de devoção na Áustria, considerado um santo por alguns aldeões, Jägerstätter foi assassinado pelas tropas de Hitler em 1943 e, anos depois, acabou sendo beatificado pela Igreja Católica. O agricultor cruza o caminho de um oficial do exército alemão também em crise, Herder (vivido pelo belga Matthias Schoenaerts), enquanto inventa estratégias para resistir às forças nazistas. O prestígio de Malick serviu como um ímã para atrair mitos germânicos dos palcos e das telas como Bruno Ganz (Asas do Desejo) e Jürgen Prochnow (Das Boot), que integram o elenco do longa. A fotografia é de Jörg Vidmer (de V de Vingança) e não de Emmanuel Lubezki, parceiro habitual de Malick, que lançou no último Festival de Veneza uma versão estendida de A Árvore da Vida com 188 minutos (e não com os 139 minutos originais).

Falado em alemão, A Hidden Life é o projeto mais ambicioso do cineasta em anos, por representar uma ruptura com as narrativas mais filosóficas e messiânicas de seus últimos filmes, como De Canção Em Canção, lançado em 2017 sob vaias. Há uma expectativa de que a saga de Jägerstätter possa entrar em circuito em março, em solo europeu – mas nada foi oficializado. Tudo em Malick é cercado de segredo.

Na filmografia dele, a Natureza é a onipotência em estado puro, só que esta é tratada a partir de contornos messiânicos, num reflexo de sua formação pelo transcendentalismo, expresso em ensaístas como Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau. O ideal transcendental desses autores escorre por Malick, lido à luz e ao ethos do Romantismo, seja pela evasão (no tempo, no espaço ou na metafísica) seja pelo tratamento quase divino dado ao Amor.
Analista da dicotomia entre inocência e hipocrisia, Malick sempre arquiteta tomadas belíssimas da natureza – como os campos de trigo de Cinzas no Paraíso, de 1978 -, reflexões existenciais – abundantes nos fronts de Além da Linha Vermelha – e licenças poéticas atípicas em Hollywood – como as da América do século XVII de Um Novo Mundo, de 2005. Outra marca: a cada filme que roda, uma multidão de astros do mais alto quilate se oferece a trabalhar para ele a cachês módicos. Sean Penn é seu maior entusiasta. Na estreia de A Árvore da Vida, ele chegou a dizer que não havia entendido bem o roteiro, mas que valia encará-lo para estar como um mestre daquele porte ao seu lado.

Mesmo nos trabalhos em que foi recebido com frieza ou desdém, vide Amor Pleno (2012) e Knight of Cups (2015), Malick continuou sendo respeitado como um artesão da imagem. Até o mais ácido cronista do cinema americano, o jornalista Peter Biskind, autor de Easy Riders, Raging Bulls – Como a Geração Sexo-Drogas-Rock’n’roll Salvou Hollywood, foi capaz de render elogios ao diretor em uma entrevista à Metrópolis. “Depois de ter desafiado as convenções de roteiro dos EUA em dois marcos dos anos 1970, Malick simplesmente desapareceu, para se dedicar a dar aulas de Filosofia, o que muitos interpretaram como uma recusa de se submeter aos vícios de Hollywood. Certo ou errado, Malick passou a ser visto como marco de integridade artística numa indústria que valoriza pouco o que é íntegro”.
Durante anos a fio, o cineasta filmou com hiatos enormes. Mas, a descoberta das câmeras digitais alimentaram seu gosto por voltar aos sets ou de remexer em imagens de arquivo.