RODRIGO FONSECA
Foi dada a largada para a edição de 25 anos do Festival do Rio, que inaugurou seus trabalhos na noite de 5 de outubro de 2023 numa cerimônia conduzida por Vanessa Giacomo e Alexandre Nero com a presença do designer e animador espanhol Javier Mariscal. Ele é uma das metades de uma laranja cítrica, porém, ao mesmo tempo, dulcíssima, que mistura documentário, técnicas de animação e a História do Brasil e da Argentina em seus Anos de Chumbo: “Atiraram no Pianista”. É um desenho animado com foco no sumiço do bamba do piano Tenório Jr. (1941-1976), aclamado como um dos instrumentistas mais virtuosos da Bossa Nova. O filme foi rodado pelo ás do desenho em duo com o veterano cineasta Fernando Trueba, que não teve chance de comparecer ao lotado Odeon, que transbordava de gente apesar da chuva.
“Trueba manda beijinhos”, disse um dançante Mariscal, que bailava no palco, ao fazer seu discurso de agradecimento às diretoras do evento: Walkíria Barbosa e Ilda Santiago. “Este filme a solução encontramos para trazer Tenório de volta”.
Grandes diretores brasileiros já abriram o Festival do Rio no passado, como Daniel Filho, Bruno Barreto, Miguel Faria Jr., Arnaldo Jabor (1940-2022), Breno Silveira (1964-2022), mas, este ano, a carioquice que inaugura a maratona cinéfila carioca veio de fora, da Espanha, terra natal do madrilenho Trueba e do valenciano Mariscal. Vem deles um filme capaz de eletrizar, mas também de provocar aquele enlevo que só a onda bossanovista causa, ao recriar um dos episódios mais trágicos da MPB: o desaparecimento e a potencial execução de Tenório Jr. durante uma passagem por uma Buenos Aires em fase ditatorial. De verve investigativa, o longa é a nova parceria da dupla responsável por “Chico y Rita” (concorrente ao Oscar de Melhor Filme Animado de 2012). É chamado lá fora de “Dispararon al Pianista” e “They Shot The Piano Player”. Os dois títulos figuram no catálogo do recém-encerrado Festival de San Sebastián, cidade no norte espanhol onde os cineastas foram aplaudidos nos dias 22 e 23 de setembro. Para os cariocas na plateia há o prazer extra de ouvir Tony Ramos falando inglês, emprestando a voz a um dos elementos centrais de uma trama capaz de revisitar ícones de nosso cancioneiro.
Com design de personagem concebida pelo maior quadrinista do país na atualidade, Marcello Quintanilha (“Tungstênio”), “Atiraram no Pianista” tem uma direção de arte exuberante, de traço plural, capaz de fundir ficção, documentário e docudrama, preservando a essência de cada um dos formatos acima sem abrir mão do encantamento o desenho animado consegue imprimir mesmo nos enredos mais soturnos. A primeira parte do filme é uma aula de música ao seguir os passos de um jornalista americano, Jeff (no gogó de Jeff Goldblum, de “A Mosca”), em busca do paradeiro de Tenório, ouvindo sua mulher, uma namorada e colegas ilustres. Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Gilda Mattoso, Caetano Veloso, João Donato (1934-2003) e Toquinho falam no processo investigativo do repórter estadunidense, que teve tempo de ouvir o poeta Ferreira Gullar (1930-2016). O personagem de Tony, João, é quem guia o protagonista na maioria desses encontros. A segunda parte, com mais tom de teoria conspiratória, passa-se na Argentina. Ferreira faz um balanço sintético arrebatador do que se passou com Tenório a partir de um episódio envolvendo uma vidente. As vozes são dos próprio músicos e escritores, colhidas por Trueba e transposta para o potente roteiro de sua autoria.
Trueba conquistou prestigio mundial com “Belle Epoque”, ganhador do Oscar em 1994. Mas sua obra une tanto documentários sobre a música latina (“Calle 54”, “O Milagre do Candeal”) quanto RomComs (“Quero Dizer Que Te Amo”), passando por longas de teor político do mais alto calibre, como “El Olvido Que Seremos” (2020). É a essa tradição mais tensa que o longa de abertura do Festival do Rio se filia, com toda a sua carioquês de estipe ibérica.
Em depoimento ao LabPop, Quintanilha contextualizou sua colaboração no filme.
“Foi maravilhoso, pela imensa carga poética e política do filme, pelo amor com que Trueba se debruçou sobre os acontecimentos que culminaram na morte de Tenório, derramando sua admiração pela cultura brasileira e pelas pessoas que a fizeram de forma tão sincera e abnegada”, disse o premiado autor de “Escuta, Formosa Márcia”, prêmio Jabuti de 2022. “Mariscal me convidou para me juntar ao projeto quando ele ainda estava dando seus primeiros passos e, desde o princípio, minha implicação foi total. Eu já havia trabalhado com os dois, no filme ‘Chico e Rita’, e embora estivesse afastado do mundo da animação havia bastante tempo, não pude dar as costas a uma história como a de Tenório. Os momentos em que falávamos sobre música, e sobre os encontros com tantos compositores, são inesquecíveis. Meu trabalho se centrou em conseguir a traduzir o traço de Mariscal para a dinâmica da animação, o que é um processo sempre instigante, e devo imensamente ao comprometimento com que minha equipe me respaldou durante toda a produção”.
O Festival do Rio segue até o dia 15 de outubro. Nesta sexta-feira, na grade do evento, o Kinoplex São Luiz 2 exibe, às 21h30, o avassalador “UM AMOR” (“Un Amor”), de Isabel Coixet, também egresso da Espanha. Quinze anos depois de sua obra-prima (“Fatal”, que também estreou no Festival do Rio), a cineasta catalã regressa ao universo dos quereres mais incontroláveis propondo uma adaptação do best-seller homônimo de Sara Mesa. Seu olhar se detém sobre uma ex-bailarina e tradutora (Laia Costa) que se apaixona por um exótico aldeão (Hovik Keuchkerian) ao se mudar para o campo. Hovik ganhou o prêmio de Melhor Atuação Coadjuvante em San Sebastián.