Rodrigo Fonseca
Em apenas 14 dias em cartaz no Brasil, “Aquaman”, a nova ventura da DC Comics na caça (ou seria melhor na pesca) por prestígio cinéfilo, contabilizou 4 milhões de pagantes em território brasileiro. Mais um tiquinho de público, daqui até segunda, e ele entra para o rol das dez mais do ano: ou seja, as produções que somaram mais pagantes em nossas telas de janeiro até aqui. Mundialmente, sua bilheteria beira US$ 560 milhões. É um sucesso que transcende qualquer expectativa em torno de um super-herói tão avacalhado – mas, ao mesmo tempo, potente.
Nesta era fantasiada de pop em que as HQs se tornaram o combustível financeiro da indústria audiovisual do entretenimento, ofertando à dramaturgia um formato inusitado e renovador (o de saga), o febril “Aquaman”, de James Wan, chegou ao circuito internacional com um formato de fábula, funcionando como um balão de oxigênio para a fantasia, pondo em xeque nosso desamparo moral, as desavenças culturais de pontos de vista e a filosofia do ódio. É uma aventura fabular perfumada a adrenalina, de tônus bem-humorado, mas aberta a debates éticos (com seu personagem central se colocando à prova todo tempo). Seu intuito é celebrar a comunhão como alternativa à submissão e à derrota, como já viu no subestimado “Liga da Justiça”, de Zack Snyder e Joss Whedon. Há filmes de super-herói que se propõem a serem metáforas secas sobre nossas carências políticas: caso da trilogia “Batman”, de Christopher Nolan, ou de “Logan”, de James Mangold. Há títulos que optam pelo desbunde: “Guardiões da Galáxia”, “Deadpool”. Mas “Aquaman”, graças ao toque de artesão de Wan, consegue unir o melhor dos dois mundos. Há provocação, há um debate sobre o conceito de nação e há filetes de melodrama, dos mais lacrimosos, num estudo sobre formação de família.
Há famílias de todas as formas na obra de James Wan, sobretudo clãs quebrados por alguma tragédia, ou pela presença do Mal. Especialista no universo das trevas, responsável pelas duas franquias que melhor assombraram as duas últimas décadas na seara do terror (“Saw – Jogos mortais” e “Invocação do Mal”), o australiano de DNA meio malaio, meio chinês James Wan foi contratado pela DC Comics/Warner para dirigir “Aquaman” não apenas por filmar com uma precisão de ourives ou por sua habilidade de atrair multidões: a intimidade dele com a fantasia pesou. Sua reinvenção para um vigilante superpoderoso das BDs parece “Brumas de Avalon”: há misticismo, há força feminina, há metafísica. Foi assim que o cineasta encarou o desafio de salvar um personagem icônico da caricatura.
Objeto de chacota oceano afora, por sua versão em desenho animado, feita para o canal CBS de 1967 a 70, no qual singrava os mares montado num cavalo marinho e falava com os peixes, Aquaman deu a volta por cima: neste fim de ano, seu nome rola pela boca de todos as redes de multiplex do planeta, como esperança para desafogar as más bilheterias deste ano. Sobretudo na Europa, há uma espera pelo êxito comercial da superprodução de US$ 160 milhões – rodada em locações na Austrália, no Canadá e no Marrocos – que pode converter o galã havaiano Joseph Jason Namakaeha Momoa (o Conan, de 2011) em um astro, dado o boca a boca positivo em tornos de sua primeira aventura solo nas telonas. Momoa emprestou contornos abusados para o justiceiro marinho que foi criado em 1941, por Paul Norris e Mort Weisinger, na edição número 73 do gibi “More Fun Comics”. Aprovado pelo público em sua aparição em 2017, em “Liga da Justiça”, Momoa regressa aos mares numa aventura frenética, de ação ininterrupta, com a grife de prestígio de James Wan na direção: o cineasta australiano de origem sino-malaia foi revelado em “Jogos mortais” (2004) e sedimentou sua reputação como sinônimo de sucesso à frente da franquia “Invocação do Mal” (2003-2006).
Estima-se que o realizador possa ser responsável por um faturamento bilionário, o maior da DC: no dia 7 de dezembro, o longa estreou na China e, só lá, arrecadou US$ 94 milhões, apenas no fim de semana. Fora do habitat do horror, Wan transformou o que deveria ser “mais um filme de super-herói” em uma fábula à la “Excalibur” (cult de John Boorman de 1981). Supervisionada pelo quadrinista Geoff Johns (que repaginou o Lanterna Verde e o Gavião Negro nas HQs), a trama rodada por Wan narra a luta de Aquaman (Momoa, um poço de carisma) contra seu cruel meio-irmão Orm, o Senhor dos Mares (vivido por Patrick Wilson, ator fetiche de Wan), para salvar o Reino da Atlântida e impedir uma guerra do povo das águas com a Terra. Orm contrata o pirata Manta Negra (Yahya Abdul-Mateen II), que tem contas pessoais a acertar com o vigilante, para caçá-lo. Isso rende sequências de perseguições e de batalhas no molde de “Game of Thrones”, tendo ainda no elenco uma inspirada Nicole Kidman (como Rainha Atlanna, mãe do protagonista), Willem Dafoe (como o estrategista Vulko), Dolph Lundgren (inspiradíssimo, na pele do rei Nereus) e Amber Heard (de cabelos rubros, no papel da princesa Mera).
A fim de ambientar os fãs do herói ao filme, a Panini Comics acaba de lançar nos países lusófonos a BD “Renascimento”, de Dan Abnet e Stjepan Sejic, para reciclar o perfil do personagem, ao lado da heroína marinha Delfim. É um quadrinho tenso, sobre política, digno das aventuras escritas por Peter David nos comics dos anos 1990. Aliás, o clima da trilha sonora de Rupert Gregson-Williams tem uma linha ninety, o que amplia o clima melodramático do filme de Wan. Temos um folhetim cheio de cores carregadas, mas há nele espaço de sobra para sequências de ação frenéticas.