Rodrigo Fonseca
Palavras gravadas por Bernardo Bertolucci (1941-2018) há cerca de um ano, inéditas até hoje, vão ecoar por Cannes na sua 72ª edição de seu festival anual, que começa na terça-feira, com “The dead don’t die”, de Jim Jarmusch. Entre os documentários da mostra Cannes Classics há uma produção que dá ao realizador italiano, morto no dia 26 de novembro do ano passado, espaço para revisitar seu passado: “Cinecittà – I Mestieri Del Cinema. Bernardo Bertolucci: No end travelling”, de Mario Sesti. Seu diretor é um crítico que gravou depoimentos do cineasta para os DVDs de seus filmes. A projeção na Croisette será no dia 23. Em paralelo, Bertolucci vai ser homenageado no Festival da Transilvânia, na Romênia, que vai de 31 de maio a 9 de junho: lá, vai rolar exibição de “O conformista” (1970), um dos sucessos que estabeleceram o prestígio mundial de Bertolucci para além da Itália.

Quando o neorrealismo italiano, estabelecido como via de expressão autoral a partir de 1945, estava às vésperas de curtir seu baile de debutante, em 1960, a fim de festejar seus 15 anos de experimentos sociais e existenciais a partir do legado estético de Rossellini e De Sica, um garotão vindo de Parma, cheio de poesia na cabeça foi tentar a sorte como assistente de direção do aguerrido poeta, escritor e diretor Pier Paolo Pasolini (1922-1975) nos sets de “Accattone – Desajuste social”. Em 1961 essa produção estrearia, garantindo boa reputação profissional ao tal rapaz, que fazia parte da primeira geração de grandes realizadores da Itália que efetivamente estudou cinema em bancos escolares. Seu nome: Bernardo Bertolucci, que morreu aos 77 anos, sem pedir licença à nossa saudade, tendo sido genial tanto na dimensão do espetáculo – como comprova “O último imperador”, pelo qual recebeu o Oscar de melhor diretor em 1988 – quanto na esfera do intimismo – vide cults como “La Luna” (1979) ou “Assédio”, sensação do Festival de Toronto em 1998.

“Cinema não resolve dilemas políticos de nenhum país, mas pode devastar a quietude de uma pessoa de maneira incontornável. Essa foi uma lição que eu aprendi na vida, com muita timidez, sempre que ouvia alguém falar algo sobre um filme meu. Não sei se fico confortável ou não. Há uma responsabilidade nisso. Mas é bom saber que a arte não passa batido”, disse Bertolucci ao longo de uma homenagem que recebeu no Festival de Cannes, há sete anos.

Naquela ocasião, recebeu uma Palma de Ouro honorária, onde revisitou seu histórico de glórias, mas sem melancolia. E o fez desde o começo, relembrando que, terminado o trabalho em “Accattone”, ele fez seu primeiro longa como cineasta, “La commare secca” (aqui “A morte”), de 1962. Era um filme de aprendiz, de estudioso que tentava aplicar nos sets as lições de aula. E isso não era encarado como erro, mas sim como tendência da moda. Aquele era um momento histórico – os anos 1960 – em que vários jovens como ele, mundo afora, na esteira do exemplo de uma jovem diretora belga chamada Agnès Varda (morta em 29 de março, e homenageada agora em Cannes com um poster que estampa seu rosto) usaram os estudos universitários sobre a linguagem cinematográfica como conceito teórico e como ferramental prático para a realização de filmes, novos filmes, cheios de frescor no enfrentamento da moral burguesa. Era o cinema moderno. Foi assim com os franceses da Nouvelle Vague (Truffaut, Rohmer, o franco-suíço Godard), com os poloneses (Polanski, Skolimowski), com os brasileiros do Cinema Novo (Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade & cia.) e… com os italianos, com o Nuovo Cinema, representado de um lado (o mais iracundo) por Marco Bellocchio (“De punhos cerrados”) e, do outro, o mais lírico, pelo tal assistente de Pasolini. Assistente que viria a se tornar um dos mais aclamados realizadores de todos os tempo. Bertolucci assinou a direção de 23 filmes, foi corroteirista (com Dario Argento) de “Era uma vez no Oeste” (1968), dirigiu um par de incursões na TV e encabeçou muitos debates sobre a arte de filmar e a psicanálise.

“A neurose é o impasse de encarar o presente, a impotência de transformar o real que temos à nossa frente”, disse Bertolucci em 2013, ao presidir o júri do Leão de Ouro de Veneza – então dado a um documentário, “Sacro GRA”.

De 1962 a 2013, tempo em que trabalhou como cineasta, Bertolucci mudou a forma de significar o desejo e as angústias a ele inerentes na tela grande. Mudou de forma tão radical que fez uma seleção de fãs – sobretudo a partir de “O conformista”, de 1970, pelo qual disputou o Urso de Ouro no Festival de Berlim – e conseguiu, ao longo da vida, inquietar vozes antipáticas à sua gira carnal, sensorial, apaixonada. “O último tango em Paris” (1972), fenômeno de público, fez dele uma estrela cosmopolita. A Itália nunca saiu dele… foi sempre o seu lugar de fala para o vocativo “Ação!”… mas o mundo passou a ser seu local de trabalho, fosse em tramas épicas de sua incursão pelo Oriente (“O Céu que nos protege”) fosse em reflexões personalíssimas sobre o querer (“Beleza roubada”), feitas sempre com atrizes e atores reconhecidos por Hollywood (Marlon Brando, Debra Winger, Jill Clayburgh, Robert De Niro). E ele nunca deixou de lado as aprendizagens de seus dias de juventude, quando cruzou com grandes realizadores brasileiros como Paulo Cézar Saraceni, Glauber Rocha, David Neves.

“Glauber Rocha uma vez me falou que o Brasil é uma terra onde o artista precisa pegar touro a unha para poder expressar sua subjetividade, pois os interesses dos grupos econômicos dominantes abafam a cultura”, disse Bertolucci em um derradeiro papo com o Laboratório Pop, em 2013, quando finalizou seu último trabalho, “Scarpette rosse”, um dos segmentos do longa em episódios “Venice 70″. O tempo passou mas eu nunca me afastei da cultura brasileira. Um grande amigo, o Fabiano Canosa, um agitador cultural aí do Rio, que programou filmes latino-americanos nos EUA por anos a fio, sempre me trouxe notícias do Brasil. Algumas alarmistas, outras preocupantes. Mas as notícias do Brasil sempre me chegavam com poesia, com amo a essa terra de vocês, que sempre me prestigiou”.

A partir de um trabalho de garimpo e pesquisa do saudoso crítico José Carlos Avellar, Bertolucci ganhou uma retrospectiva de sua obra, no Rio, em 2013, às vésperas do lançamento de seu último longa: “Eu e você” (“Io e Te”), sobre a relação tempestuosa entre um garoto introspectivo e sua irmã. Foi um projeto que ele realizou sobre uma cadeira de rodas: por conta de uma operação na coluna cervical, que não teve o sucesso esperado e foi agravada por um erro médico, ele perdeu o movimento das pernas. Mas não desistiu. Esse era um verbo que ele desprezava. “Disseram que as tecnologias digitais iam acabar com o cinema, mas o 3D veio e potencializou bilheterias. O cinema ainda existe, tem público e ainda precisa contar histórias”, disse Bertolucci nos dias em que seus filmes lotaram o Instituto Moreira Salles. “É bom saber que nossas histórias ainda podem mobilizar olhares, fazer pensar”.

Sobre as novidades de Cannes, eis os 21 concorrentes à Palma de Ouro de 2019:
“The dead don’t die”, de Jim Jarmusch (filme de abertura)
“Les Misérables”, de Ladj Ly
“Bacurau”, de Juliano Dornelles e Kléber Mendonça Filho
“Atlantique”, de Mati Diop
“Sorry we missed you”, de Ken Loach
“Little Joe”, de Jessica Hausner
“Dolor y Gloria”, de Pedro Almodóvar
“The Wilde Goose Lake”, de Diao Yinan
“La Gomera”, de Corneliu Porumboiu
“A hidden life”, de Terrence Malick
“Portrait de la jeune fille em feu”, de Céline Sciamma
“Le jeune Ahmed”, de Jean-Pierre e Luc Dardenne
“Frankie”, de Ira Sachs
“Once upon a time in Hollywood”, de Quentin Tarantino
“Parasite”, de Bong Joon Ho
“Matthias et Maxine”, de Xavier Dolan
“Roubaix, une lumière”, de Arnaud Desplechin
“Il traditore”, de Marco Bellocchio
“Mektoub, my love: Intermezzo”, de Abdellatif Kechiche
“It must be Heaven”, de Elia Suleiman
“Sibyl”, de Justine Triet
Após a premiação, dia 25 de maio, será projetada a comédia motivacional “Hors norme”, de Éric Toledano e Olivier Nakache (dupla que vendeu 20 milhões de ingressos com “Intocáveis”, em 2011), com Reda Kateb e Vincent Cassel vivendo um par de professores especializados na inclusão de alunos com autismo. Este ano, a Palma de Ouro Honorária será entregue a Alain Delon, ator de 83 anos que atravessou seis décadas da História fazendo filmes. Ele filmou de 1957 a 2012. Seu tributo será no dia 19, com direito à sessão do aclamado “Cidadão Klein”, de Joseph Losey, laureado com o César, o Oscar francês, de melhor filme, em 1977. No dia 24, às vésperas do encerramento de sua programação, Cannes recebe Sylvester Stallone para uma homenagem pelo conjunto de sua carreira como astro, produtor, diretor e mito do cinema de ação, com direito a uma projeção de gala de “Rambo – Programado para Matar” (1982) em cópia 0KM. O evento conta ainda com a exibição de trechos inéditos de “Rambo – Last blood”, seu novíssimo trabalho, ainda em finalização, que estreia em setembro.
Nesta segunda foi anunciado que “Boyz’n the hood” (1991) vai ser exibido nas areias do Cinéma de la Plage, em tributo ao realizador John Singleton, morto no dia 28, aos 51 anos.