Rodrigo Fonseca
Vai ter um Herzog inédito no próximo É Tudo Verdade (4 a 14 de abril), “Encontrando Gorbachev”, que é codirigido por Andre Singer, e arrebatou boas críticas no exterior, embora não passe, nem perto da fase áurea do cineasta na Alemanha dos anos 1970 e 80. O mesmo pode se dizer sobre seu contemporâneo Volker Schlöndorff, cujo doído “Return to Montauk” (2017) passou desapercebido pela indústria. Mesmo o mítico Wim Wenders, que lançou o .doc “Papa Francisco, um homem de palavra” em Cannes, em 2018, não emplaca um grande sucesso desde “Pina” (2011). Costuma-se dizer que o brilho atual do cinema germânico é mérito de “Toni Erdmann”, de Maren Ade, premiado pela crítica, na Croisette, em 2016, e indicado ao Oscar. Mas, antes de Maren brilhar, era Christian Petzold quem mantinha ativo e vivo o brilho autoral da pátria de Fassbinder. Na competição do último Festival de Berlim (7 a 17 de fevereiro), os alemães se esbaldaram de prêmios: a cineasta Nora Fingscheidt ganhou o Troféu Alfred Bauer (dado a novas experiências de linguagem) por “System crasher” e sua colega Angela Schanelec ficou com o prêmio de melhor direção por “I was home, but…”. Mas essa atual ebulição criativa nas telas de lá é atribuído ao sucesso mundial de Petzold, diretor nascido na região da Renânia do Norte-Vestfália, aclamado como o maior cineasta de seu país entre os realizadores revelados nos últimos 20 anos, graças a sucessos como “Bárbara”, de 2012, e “Phoenix”, de 2014. E, no dia 11 de abril, chega ao Brasil um longa-metragem inédito dele: “Em trânsito”.

Aclamado nos 15 festivais internacionais por que passou ao longo de um ano, na fila de espera por espaço em circuito, “Transit” (título original) é um drama sobre fantasmas nazistas e sobre as resistências ideológicas aos totalitarismo. “A identidade vai além do território geográfico. A geografia mais significativa está na língua, pois é nessa que tecemos a identidade e o mistério”, disse Petzold ao Lab Pop, na projeção de “Em trânsito” no Festival de Berlim.

Cada diálogo trocado pelos personagens de “Em trânsito” soa como se fizesse referência à II Guerra Mundial e ao jugo do nazismo sobre a Europa. Temos como protagonista um dissidente da política germânica, Georg (o ótimo Franz Rogowski), que deseja entrar na França, antes de o país ser ocupado, e, de lá, partir para o México, para recomeçar sua vida. “É um filme de andanças, vetorial. Existe nele um movimento de diáspora, de autopreservação, que dialoga com as imigrações clandestinas de hoje, que geram os bolsões de refugiados que, em muitos países, são tratados com desigualdade”, alerta o cineasta de 58 anos.

No enredo filmado por Petzold, a partir do romance de Anna Seghers, um manuscrito de um autor morto cai nas mãos de Georg, o que faz com ele seja confundido com um escritor. Porém, todos os locais por onde Georg passa não guardam referências visuais dos tempos do Holocausto: estamos na Marselha de hoje, com roupas e armas atuais, retratando refugiados do Oriente Médio como os que hoje se amontoam em grandes centros urbanos das metrópoles europeias. “As certezas históricas são um convite a um erro quando dissociadas dos componentes humanos, dos afetos”, disse o cineasta.

O objetivo de Petzold é mostrar que a opressão dos tempos hitleristas, mesmo com outras motivações, não é diferente da violência sob a qual os imigrantes ilegais vivem em território berlinense. “A ideia aqui é misturar o manuscrito encontrado por Georg, com os dois tempos históricos da trama: um encenado; o outro, retratado. Há fato e fábula juntos, risco e conforto. E existe uma narração literária que dá ritmo à narrativa. No cinema autoral, palavra vira melodia. Basta ver as cenas de um clássico como “Jules et Jim”, de Truffaut, para sentir a força das palavras e o que elas podem representar de potência à imagem”, disse Petzold, hoje envolvido com a série de TV “Police 110”, um cult na Alemanha.

“Em trânsito” retrata cidades como Marselha, por exemplo, com um exotismo que descaracteriza a bela paisagem do local. As sequências de perseguição aos refugiados compensam a perda de ritmo das cenas de diálogo com doses fartas de adrenalina e de denúncia social. O longa se impõe na tela como uma investigação de linguagem sobre a perenidade do Mal na forma da exclusão. “Cinema é parceria e comunhão criativa. Quando inicio um filme, confio à minha montadora habitual, Bettina Böhler, a tarefa de me dar a linha narrativa que eu devo seguir. E é ela que demarca meu ritmo”, disse Petzold. “Filmo com uma ideia de personagens e com algumas inquietações. Mas é Bettina quem encontra o tom, na ilha de edição. Tom que um parceiro como Franz Rogowski escava de sua alma”.

Falando das grandes diretoras alemãs do momento, Maren Ade anda agora numa fase prolífica como produtora, tendo participado do filmaço israelense que conquistou o Urso de Ouro em fevereiro: “Synonymes”, de Nadav Lapid. Produz ainda o esperado “Roads”, de Sebastian Schipper, que será exibido no Festival de Tribeca, em Nova York, no dia 25 de abril.