Rodrigo Fonseca
Quinta-feira é dia de “Dolor y Gloria”, de Pedro Almodóvar, em circuito nacional. É o diretor espanhol em seu apogeu. Devastador é a palavra para definir a volta do realizador de “Tudo sobre minha mãe” (1999) às telas, com seu melhor filme em quase 20 anos. Fotografada com um colorido berrante por José Luis Alcaine, esta trama trata do ocaso (e posterior redenção) de um cineasta, Salvador Mallo (papel de um grisalho e inspiradíssimo Antonio Banderas) cansado da vida, agrilhoado à solidão. O desempenho de Banderas, coroado com o prêmio de interpretação masculina de Cannes, é de rachar a alma, pela tradução plena da fragilidade e do desamparo: Salvador sofre de dores na coluna e tem um problema na garganta, ligado ao sistema digestivo, que pode mata-lo engasgado. No roteiro, o cineasta faz a dramaturgia se esgarçar por caminhos inusitados, incorporando até chapas ortopédicas (em forma de animação) em sua narrativa, saudado pela revista “Cahiers du Cinéma” como um dos acontecimentos cinéfilos de 2019.
Até roupas de Pedro foram usadas em “Dor e Glória” (título brasileiro) como modelo do vestuário de Salvador, um cineasta cheio de crises em sua vida amorosa, em sua relação com as drogas e em sua saúde. Ele busca a paz com o astro de seu primeiro filme, que acaba de ser desenterrado para uma exibição em uma cinemateca espanhola. Lançado em março na Espanha, o longa-metragem traz Penélope Cruz na pele da mãe de Salvador, numa atuação que anda arrancando elogios. Almodóvar já saiu da Croisette em anos passados com o prêmio de melhor direção (por “Tudo sobre minha mãe”) e o de melhor roteiro (por “Volver”). Mas, nos últimos dez anos, seus longas bateram na trave em Cannes e no imaginário da cinefilia, apesar do rebuliço que “A pele que habito” criou em 2011, conquistando apaixonadamente parte dos fãs e incomodando outros. Relacionado pelo próprio Pedro a “Má educação” (2004) e “A lei do desejo” (1987), “Dolor y Gloria” pode ser um bom exemplar do chamado almodrama, uma releitura folhetinesca dos afetos a partir de parâmetros que não são da realidade e sim do legado histórico do melodrama. “Julieta”, que ele levou ao festival francês em 2016, já era um exemplo disso.
Há quem classifique o filão de metamelodrama. Esse rico verbete é parte das pesquisas de dramaturgia feita pelo professor José Carvalho (considerado o mais prestigiado teórico sobre roteiro no Brasil, que leciona como escrever para cinema e TV no Rio e em São Paulo na Oficina Roteiraria [http://www.roteiraria.com.br/]). Com base nas reflexões antropológicas do americano David Bordwell e nos ensaios geopolíticos do português João Maria Mendes, Carvalho consolidou essa expressão a partir da ideia de que o realizador de “Áta-me” (1989) cria seu universo com base no tecido visual “vivo” derivado do melodrama clássico e de suas releituras modernas, de Douglas Sirk a Rainer W. Fassbinder.
Estima-se que o filme vá ser tema de debates no Festival de San Sebastián (20 a 28 de setembro), no norte da Espanha, uma vez que o evento escolheu Penélope para receber a honraria Troféu Donostia deste ano.