RODRIGO FONSECA
Usava-se um bocado o adjetivo “adorável” na fortuna crítica referente ao cinema da década de 1980 para dar um rótulo de excelência a comédias agridoces do naipe de “Um Rapaz Solitário” (1984), com Steve Martin, ou “Digam O Que Quiserem” (1989), com John Cusack. São esses filmes – e toda a deliciosa linhagem a que pertencem – a referência que salta ao olhar e ao imaginário cinéfilo ao fim do… adorável… “De Pai Para Filho”, de Paulo Halm, exibido neste sábado no Festival de Petrópolis. Passa muita coisa pela nossa cabeça conforme a projeção rola, como um sintoma da pujante poesia do novo longa-metragem do diretor de “O Resto É Silêncio” (2003). Tem um universo próprio ali, que vem da poesia discreta de Halm (um dos mais aclamados roteiristas do país) ao retratar afetos engasgados sem recorrer ao excesso. O máximo de alusão que pintou na cachola ENQUANTO seu filme se desenrolava na telona GG do Patio Shopping era o “Fulaninha” (1986), de David Neves, e, ainda assim, só por conta da bifurcação entre o mar da Zona Sul carioca e um apê quase na quadra da praia. Tem parentela entre eles, tanto na geografia quanto na dor. Mas há uma voz autoral bem particular no modo de se esgueirar entre o riso e o pranto. Parte essencial do equilíbrio entre esses registros – o doce e o amargo – se deve à montagem do também cineasta Eduardo Nunes (“Cinco da Tarde”), editada na moviola da delicadeza.
Durante suas filmagens, Halm falava de seu “De Pai Para Filho” como se fosse “um filme fofo”. É como o realizador de “Histórias de Amor Duram Apenas 90 Minutos” (2009) enquadra sua rascante RomCom (comédia romântia). Tem romance, tem amizade, tem um fantasma ligado aos antigos espíritos do B-Rock e tem um astro em ascensão – Juan Paiva, o Buchecha de “Nosso Sonho” – num processo duplo de reeducação das emoções. De um lado, o personagem dele, José, que é dono de uma loja de ferragens em Araraquara (SP), vai aprender o que é a paixão no sorriso de Dina (Miá Mello, digna da Ellen Burstyn de “Alice Não Mora Mais Aqui”). Do outro, com uma ajudinha do Além (ou seria de sua imaginação), José vai aprender que um abraço paterno pode ser um belo de um abrigo, no carinho (espectral) de Machado, o Gasparzinho roqueiro vivido por um Marco Ricca com jeitão de Bill Murray.
Petrópolis riu, engasgou e aplaudiu o que viu ao longo de duas horas que voam na tela, defendidas com sobriedade na bela fotografia eatrutura por Alex Araripe – especialmente eficaz no flerte com as águas praianas do Rio. Trata-se de um estudo sobre lutos que se aconchegam nas mínimas brechas que a gente, sem saber, abre para a Perda – essa danada – se aboletar na gente. Não por acaso, o roteiro crava uma faca em nosso miocárdio: “A morte me tirou direito de decidir sobre a minha própria vida”. Enlutados hão de enteder a medida dessa aforismo.
Na trama, que teve Liara Castro como produtora, assim como Jaqueline Neves (na produção exectiva), José toma um sacode do Destino ao sair de Araraquara e vir para Copacabana. Ele se desloca a fim de vender um apartamento que recebeu como herança de Machado (Ricca, um ímã de lagriminhas e de esgares, a cada fala). Ao pisar no prédio onde o porra-louca do Machadão viveu, ele descobre que o finado tecladista – que aparece para ele como uma entidade fantasmagórica – dava aulas de piano para a menina Kat (Valentina Santos Vieira, um sol em cena).
Órfã de pai, Kat tenta ajudar a mãe, Dina (Miá), a encarar a dor do luto. A presença de José, com seu jeitão de Jack Lemmon em “Se Meu Apartamento Falasse” (1960) – mérito da madura atuação de Paiva -, leva a menina a enxergar no vizinho um partidão para sua mãe. É daí que começa um esboço de paixonite que, minuto a minuto, dá vez a uma cartografia sentimental de almas alquebradas por ausências que não voltam. Vale a plateia dar um bom destaque à participação de Thiago Fragoso (como pai de Kat) e ao desempenho do casal alto astral vivido com humor por Fabrício Santiago e Pablo Sanábio.
Uma vez mais, é de bom tom fazer um regresso aos anos 1980 e sua filmografia cômica (com ares de sitcom), para saudar a pertinência dos longas com o já citado Steve Martin. O ar pesado deste no já citado “Lonely Guy” acha um pouso seguro nos trejeitos com que Paiva traduz as inseguranças de seu pesonagem. A seu lado, Miá gravita ao abismo para a redenção, sempre fluindo soberana pelas mais variadas instâncias da angústia. É uma atuação de responsa, que expõe a busca da atriz pra construir uma figura tridimensional, isenta de caricaturas. Ricca, a cada deixa, faz a gente tomar chá de maturidade da colher de um artista que optou pela “vida loca” daquele tal de roquenrol. Lembra o Bill Murray maroto de “O Feitiço doTempo” (1993), o do Dia da Marmota.
Com “De Pai Para Filho” e a belíssima homenagem que dedicou ao diretor Paulo Cezar Saraceni (“Ao Sul Do Meu Corpo”), o Festival de Petrópolis se impõe como um evento de respeito, que merece mais espaço nos holofotes da metrópole.