Texto por Mario Marques
Esbarrei no sujeito numa manhã quente, numa piscina mequetrefe de um hotel de quinta, em Paulo Afonso, às margens do Rio São Francisco. Para chegar lá pegamos um avião todo troncho e uma missão nebulosa: cobrir o EcoFestival, evento de shows bancado por uma hidroelétrica com restos de recursos públicos. Era 1998. O cidadão corre: diz que vai fazer uma foto do Jean-Luc Ponty para a revista “Manchete”, onde trabalhava. “Na Manchete quem manda é a foto”, ele sentenciou. Ponty em seguida sentou-se à piscina comigo para uma entrevista ao “Globo”. E aí vejo Dirley Fernandes à distância, jogando-se com enorme força na água e me olhando com aquela indefectível cara cretina, como se dissesse: “Se fode aí você agora”.
Durante todos os dias do festival trocamos conversa. Dirley era bom de papo e de história. Referia-se de forma cítrica a alguns sem titubear. “Vamos mais pra lá. Esse sujeito aí do lado é um débil mental, não tenho paciência pra ele”. Controverso, quando feliz resplandecia, brilhava no escuro. Puto, dava medo. Numa mesa na Lapa, acompanhei o trajeto de um copo de chope em direção à cara de um colega que o chamou de “idiota”. Cuspia marimbondos e chutava sua cara se perdesse a cabeça. E perder a cabeça era uma de suas especialidades. Mas não a maior, claro.
De Paulo Afonso, em 1998, até pelo menos 2012, Dirley esteve, de forma impactante, em todas as minhas aventuras jornalísticas. Em 2003, assumiu um blog no site Laboratório Pop falando de cana, tema que abraçou com consistência no projeto “Devotos da cachaça”. Foi editor assistente do Laboratório Pop. Levei-o também para o “Jornal do Brasil”, para a revista “Gula” e dei dois livros na sua mão para editar: as biografias do Eurico Miranda (Sérgio Frias) e Seu Jorge (Leonardo Rivera). Numa delas, levantou-se e bradou: “Chega, não sou palhaço. Encheu”. Foi embora e só voltou porque implorei.
Dirley era único. Jornalista com enormíssimos recursos literários, rebuscava seus textos, deslizava entre as palavras e entregava belezas supremas. Perguntava o caminho da pauta, esmiuçava o que você precisava no texto, ia lá e devolvia um e-mail com um irretocável material. Era fino. Era espetacular.
Nossos encontros, curiosamente, a maioria, eram sem álcool. Eu sempre bebi pouco, fugia da maioria dos convites a caminho da marvada. Então ele ia para minha casa ou para algum lugar e trocávamos horas e horas de ideias e processos. Em 2004, pedi a ele que editasse e fechasse sozinho uma edição da revista “Laboratório Pop”. Abandonei tudo para abraçar uma missão do meu pai. Ele telefonava invariavelmente para tirar dúvidas comigo, mas sempre deixava perfumes de segurança: “Fica tranquilo. A revista vai ficar boa”. Nos encontramos uns 20 dias depois, ele com a revista na mão, feliz à beça, como um troféu. “E aí”?”, perguntou. Eu: “Ficou boa pra caralho”. Ele: “Te falei, porra”.
Saímos na porrada várias vezes, nunca na mão, mas depois ficava tudo resolvido, em irmandade. Ele era raivoso, mas tinha uma doçura e um amor no coração que faziam o ódio virar fumaça. Uma vez baixou no hospital. Nem lembro por quê. Fui lá e ele: “Ainda não foi dessa vez, pode ir”.
Nas vezes em que nos encontramos etilicamente, era quase sempre no mesmo lugar: um restaurante japonês na Olégario Maciel de um chinês, o Ping, que deixava a gente levar nossos CDs e colocar para tocar altíssimo, mesmo se algum cliente reclamasse. Ali, junto com o guitarrista André Valle, a executiva de indústria fonográfica Carlla Bastos, a saudosa Fernanda Gualda, o cantor Paulinho Loureiro e mais uns 3 ou 4, passamos horas e horas e horas entre saquês e sushis. Ouvimos “Room for squares”, de John Mayer, e “Catching tales”, de Jamie Cullum, por no mínimo 100 horas em dias distintos, sempre retalhando novos comentários de arranjos, melodias, harmonias.
Dirley Fernandes era mesmo um cara especial. Tinha um amor por amigos. Abraçava-os com força. “Vem cá, vem cá, dá um abraço aqui no seu macho”. Em 2/6/2011, mandou o e-mail abaixo endereçado a seus agregados:
“Queridos,
contra todas as previsões, tudo indica que conseguirei completar mais um ano de vida quase são e relativamente salvo no próximo dia 6. Por via das dúvidas, achei melhor comemorar com um pouco de antecedência pra não abusar da sorte.
Em vista disso, no sábado, a partir de 3 e meia da tarde, estarei recebendo os cumprimentos dos amigos aqui em Vila Isabel. Farei um pernilzinho…
A presença de vcs me deixaria muito feliz.
Tá aqui o endereço (o apê é 705)”.
Dirley era uma pipa avoada, tosco, por vezes rude. De repente viu-se laçado por Anna Maria Silva, uma açucarada pessoa. Ela insistiu, perseverou. Ele pulava, mas Anna foi costurando e modulando seus fantasmas, foi acalmando sua alma e dando-lhe paz e parceria. E nem as piores cachaçadas quebraram o encanto daquele encontro improvável de amor. Eu mesmo disse pra Carlla Bastos: “Caceta, a Anna vai sofrer”.
Eu só não imaginava que o sofrimento fosse como o de hoje: a de uma história de amor interrompida por uma partida estúpida. Com barba, sem barba, com cabelo, sem cabelo, bêbado, sóbrio, Dirley estampou seu legado no planeta. Não foi só sua existência. Foram os escritos de sua existência. Uma existência cuja referência maior era Charles Bukowski. Era capaz de citar trechos de seus livros como se fossem lições para todo o sempre. Nutria e alimentava aquela aura marginal, boêmia, transgressora e agressora, sempre com copo de qualquer álcool na mão e o olhar claramente imerso em reflexões desvairadas, citando sambas, como uma espécie de carioca anos 50.
No último sábado (11) André Valle e Carlla Bastos me empurraram cérebro abaixo a notícia do atropelamento de Dirley em São Paulo. Fiquei até agora, sexta (17, 2h da manhã), na esperança de a história ter outro fim, apesar de os boletins serem sempre pessimistas. Não ia escrever nada. Não ia fazer nada. Mas estou aqui, associando-me a outros tantos que não conseguem entender como esse cara foi-se embora, ainda mais em SP, distante do RJ – e de Duque de Caxias, sua terra de nascença, onde forniu sua visão de mundo caótica, com frases de efeito que ressoam por aí.
Tem mais um e-mail antigo de Dirley que resgato aqui, antes de interromper essas linhas por absoluta tristeza. “Vou à Barra na segunda à noite. Se o moço quiser sentir minha energia no fim da tarde de segunda-feira, será ótimo”.
Puta ódio.