RODRIGO FONSECA
Nietzschiano em sua adesão à ideia do eterno retorno, adepto da reflexão de que potências vão e voltam no exercício da arte, o diretor Emir Kusturica abriu seu festival, chamado de Küstendorf (e ambientado no resort homônimo na Sérvia), com um filme italiano que está no páreo do Oscar – “Io Capitano”, de Matteo Garrone -, o que o leva a apelar duplamente à terra de Federico Fellini no desfecho do evento. Neste sábado, a maratona cinéfila eslava, que decorre a cerca de três horas de Belgrado, exibe o felliniano “8 ½” (1963), em sua leva de clássicos, e apela para um contundente estudo sobre inadequações territoriais, batizado de “Disco Boy”, na sua gala de pré-estreias. É esse o longa que encerra o evento, pouco antes da premiação da seleção competitiva, composta exclusivamente de curtas. Giacomo Abbruzzese assina a direção dessa experiência sensorial revelada ao mundo na Berlinale, em fevereiro do ano passado.
Na ocasião, o Festival de Berlim presenteou esse misto de drama existencial e thriller bélico com a láurea de Melhor Contribuição Artística, dada à sua direção de fotografia, assinada pela francesa Hélène Louvart (que trabalhou com o cearense Karim Aïnouz em “A Vida Invisível”). No Brasil, há meios de ver essa produção via streaming, por meio da URL a seguir: https://www.belasartesalacarte.com.br/disco-boy.
Amparado numa ginástica de iluminação e de enquadramentos nada convencional, “Disco Boy” propõe uma espécie de amalgama existencial e sensorial entre o revolucionário Jomo (Morr Ndiaye), do Níger, e o imigrante ilegal bielorrusso Aleksei (Franz Rogowski, em genial atuação). Enquanto o jovem nigerense se une à guerrilha contra companhias de petróleo, o “alien” eslavo se alista na Legião Estrangeira como forma de ganhar a nacionalidade francesa. Após o grupo de Jomo sequestrar cidadãos franceses, Aleksei é enviado para comandar uma operação a fim de detê-lo. Mas uma conexão nas raias do misticismo vai aproximar os dois.
Entre os títulos em concurso, o mais talhado para prêmios é finlandês “Duck Roast”, de Jelica Jerinic. Tem mais um bloco das curtas em disputa para ser exibido nesta sexta, que traz “Highway of a Broken Heart”, de Nikos Kyritsis; “Madden”, de Malin Ingrid Johansson; “mise à nu”, de Simon Maria Kubiena e Lea Marie Lembke; “Shanti”, de Vivek Rai; “Only The Devil Hates Water”, de Lidija Mojsovska. O escritor italiano Sandro Veronesi preside o júri.
Na edição de número 17, o festival surgiu da experiência de Kusturica nas filmagens de “A Vida É Um Milagre”, ganhador do Prêmio do Sistema Nacional de Educação da França, em 2004. A história de amor entre um casal mucho loco, fraturado pela guerra entre sérvios e bósnios, é marcada pela presença de uma jumentinha que empaca na linha do trem que cruza a cidade. O tom fabular daquela trama dá o tom de Küstendorf, na decoração hipercolorida dos chalés e da capelinha local, assim como num café onde é possível comprar doces feitos como coco e chocolate.
Respira-se cinema em cada canto de Küstendorf, que exibe clássicos restaurados numa salinha de projeção chamada Cine Stanley Kubrick, em tributo ao realizador de “2.001 – Uma Odisseia No Espaço’ (1968).