RODRIGO FONSECA

Inaugurada em 1988 com “O Retorno de Jedi” (1983), numa dublagem impecável, a “Tela Quente” segue firme e forte no ar, 36 anos após sua criação, sempre às noites de segunda, na TV Globo, cumprindo o papel de apresentar ao público da televisão aberta tendências que transformaram o audiovisual, no circuito exibidor e noutras mídias, incluindo aí a diversidade. É o que justifica a escolha desta noite: “Força Bruta” (“The Roundup”, 2022). É um exemplar divertido da força pop das franquias da Coreia do Sul.

Com “Parasita” (e seus quatro Oscars + uma Palma de Ouro) flamulando como um estandarte de glória para o mundo, o cinema pop sul-coreano vem emplacando um sucessos atrás do outro desde 2004, quando “OldBoy” estourou no Festival de Cannes, conquistando o Grande Prêmio do Júri, retratando lutas (com um martelo na mão) de um modo como nunca se viu, a um passo da crueza. Seu próprio realizador, Park Chan-Wook, foi fazer séries no Ocidente, como é o caso de “O Simpatizante”, hoje na MAX.

Mas uma coisa é celebrar o êxito e o vigor estético de bons filmes. Outra coisa é se orgulhar de ver um personagem de um desses bons filmes ultrapassar as fronteiras de sua própria narrativa e virar uma figura que cai no gosto do planisfério cinéfilo, um pouco como se viu no Brasil com o Capitão Nascimento e com Zé Pequeno. Este ano, um thriller de ação que mais parece “Stallone Cobra” deu isso à Coreia do Sul, graças ao carisma de um ator em estado de graça: Ma Dong-seok, ou Don Lee, visto ano passado em “Eternos”, da Marvel.

No papel do imparável policial Ma Seok-do de “Força Bruta” (“The Roudup”), uma produção de US$ 7,7 milhões que faturou US$ 100 milhões Ásia adentro, o ator de 53 anos cria um tipo maluco, perigoso, mas devotado a um ideal de justiça que parece não caber mais num mundo de polarizações, assombrado pela patrulha ideológica da correção política. Suas peripécias podem ser conferidas na Globo nesta segundona, às 22h25.

A tal patrulha mencionada acima foi responsável por uma erosão no ethos e na forma do cinema de ação, a partir dos mandamentos que o filão assumiu como seu código simbólico a partir do fim dos anos 1960, com o sucesso de “Bullitt” (1968). A ideia do “exército de um homem só” que nos garantiu pérolas como “Comando Para Matar” (1985) ou “Duro de Matar” (1988) passou a ser vista como um ranço obsoleto de uma certa moral (a americana, da era Ronald Reagan) e não um pleito universal (como os gregos, com seus heróis, apontaram, milênios atrás).

Aquiles seria “cancelado” pelas redes sociais de hoje, como acontece com Rambo. Mas… na seara dos filmes B, aqueles feitos em regime de cinto apertado, há uma margem de manobra. E é nessa margem que Ma Seok-do pode agir como Gene Hackman agia em Popeye Doyle em “Operação França” (1971). E a direção precisa de Lee Sang-yong (de “4th Period Mistery”) facilita muito seu trabalho, uma vez que o realizador mantém a adrenalina alta o suficiente para que Don Lee possa destilar toda a fúria de um detetive impulsionado pela corrupção estatal à sua volta.

Imparável no cumprimento do dever, Ma Seok-do (dublado aqui por Charles Dalla) precisa repatriar um criminoso – igualzinho Michael Douglas teve que fazer em “Chuva Negra”, lá de 1989, com um chefe da Yakuza – só que pro Vietnã, onde descobre uma rede ilegal que incrimina muita gente. Numa investigação nada protocolar, ele vai abrindo uma trilha sangrenta até chegar ao bandido que deseja tirar de circulação.

O que rege seus passos é um conceito que rejeitado Hollywood consagrou mas, depois, foi aconselhada a rejeitar: a premissa de que o modo de deter alguém sem freios é caçá-lo com alguém com menos freios ainda.

A forma como Sang-yong dirige o longa nos liberta dessa pecha, ao propor uma crônica social que faz de Ma Seok-do um rebelde em um sistema esgotado. É uma abordagem crítica mais do que bem-vinda para oxigenar um gênero cansado, mas que fala de sacrifícios e lealdade.

Um quarto título da sanga “The Roundup” foi exibido em sessão de gala no desfecho do Festival de Berlim deste ano.