Rami Malek revive Freddie Mercury neste sucesso de US$ 743 milhões. Crédito Fox

Rodrigo Fonseca
Machado de Assis costumava dizer que a maior virtude dos números é o fato de eles não abrirem brecha para metáforas: com US$ 743,7 milhões de receita, versus um custo estimado em US$ 52 milhões, “Bohemian Rhapsody”, a história de Freddie Mercury, é o que se pode chamar, numericamente – ou seja, sem qualquer analogia equivocada – de fenômeno. Sua vitória na disputa pelo Globo de Ouro de Melhor Filme de Drama de 2019 é uma sequela desse sucesso: ok, a premiação dada ano a ano pela Hollywood Foreign Press Association (HFPA, a associação de imprensa estrangeira da Merca do audiovisual) costuma se guiar mais por transcendências poéticas do que por cifras, mas estas pesam muito nos EUA. Inegavelmente, o feito mercadológico do drama de tintas cinebiográficas pilotado (inicialmente) por Bryan Singer (afastado sob acusações de assédio), e depois por seu fotógrafo Newton Thomas Sigel coroa um filão: o dos filmes sobre ídolos do rock. Mais do que isso: a atuação de Rami Malek como Mercury é algo de uma plenitude metafísica e de uma excelência folheada a ouro. E com ele, pautado pela delicadeza, a pauta LGBTQ ganha, nas telas, um super-herói de carne, osso, suor em bicas e voz de veludo.
Se no drama deu Queen na cabeça, no humor a vitória foi para a inclusão racial: tônica deste Globo dourado. A Melhor Comédia foi “Green Book – O Guia”, o filme mais Frank Capra feito nos EUA desde “A felicidade não se compra” (1946). Coroado no Festival de Toronto com o prêmio de júri popular, o longa revive a história real interracial de um motorista e segurança ítalo-americano todo brucutu (Viggo Mortensen) com o finíssimo pianista negro Don Shirley (Mahershala Ali, melhor coadjuvante da festa. Seu roteiro trafega por caminhos inusitados para um road movie ao rever a construção da amizade (real) entre eles no lado mais racista da América. E na alquimia entre seus protagonistas, Peter Farrelly, o diretor, um cineasta que vem de chanchadas como “Debi & Lóide” (1994), reinventa-se como artista. É um longa guiado pelo lúdico, atento à poesia do aperto de mãos. Foi o mais premiado da noite.

Glenn Close em “A esposa”: vitória tardia… e merecida

Ovacionada ao ter seu nome anunciado por Gary Oldman no palco do Beverly Hilton, Glenn Close desbancou Lady Gaga, o que foi triste, dada a potência de “Nasce uma estrela”, mas há uma alegria intrínseca à vitória da estrela de “Atração fatal” (1987), uma vez que esta, há décadas, merecia ter um troféu para chamar de seu. A história da mulher de um escritor que é laureado com um Nobel dá a Glenn a chance de depurar seu ferramental cênico à luz do empoderamento feminino. Entre os atores de comédia, Viggo merecia ganhar, mas quem venceu foi o sempre ótimo Christian Bale, não apenas pelos 20 quilos que engordou para viver Dick Cheney, em “Vice”, mas pela camaleônica habilidade de se refazer de seus personagens mais icônicos, como Bruce Wayne. E seu discurso, agradecendo Satanás pela inspiração para encarnar o vice-presidente de George W. Bush, foi um golaço de carisma. Tão bonito quanto o gol dele foi o chute de Regina King em prol do #Time’s Up, defendendo o maior respeito às mulheres ao ser laureada como coadjuvante por seu belíssimo desempenho em “Se a Rua Beale falasse”, mais um estandarte de inclusão racial.
Foi pena (e injustiça) Spike Lee não ter levado nada, em especial o prêmio de direção, dado ao mexicano Alfonso Cuarón, pelo divisor de águas chamado “Roma”, da Netflix, a estrela maior da noite, ao se esbaldar de láureas na disputa de TV. Cuarón levou ainda o Globo de Filme Estrangeiro para o México, o que era justíssimo. Mas ele mesmo se sentiu um usurpador ao tirar o prêmio de Diretor de colegas como Spike.
A sorte é que, numa festa regada a debates sobre a integração de raças e sexos, com forte pleito em prol da população afro-americana, um longa de super-heróis protagonizado por um menino negro, filho de mãe latina, sagrou-se o melhor de sua categoria. A Marvel enfim teve dinheiro a um Globo dourado não por “Pantera Negra”, mas pelo belo “Homem-Aranha no Aranhaverso”, que é uma aula de técnicas de animação. Seu astro, o jovem Miles Morales, é o rosto de um novo e mais plural cinema, que respeita e reverencia quem um dia foi excluído e ainda consegue homenagear medalhões do passado, como Jeff Bridges, coroado com o Cecil B. DeMille Award por sua obra magistral. Foi uma bonita festa. E Sandra Oh é uma apresentadora sem igual.

 

Marvel conquista o Globo de Ouro de melhor animação com “Homem-Aranha no Aranhaverso”

 


Filme (Drama)
“Bohemian Rhapsody”, de Bryan Singer
Filme (Comédia)
“Green book – O Guia”, de Peter Farrelly
Direção
Alfonso Cuaron (“Roma”) 
Atriz (drama)
Glenn Close (“A esposa”)
Ator (drama)
Rami Malek (“Bohemian Rhapsody”)
Atriz (comédia)
Olivia Colman (“A favorita”)
Ator (comédia)
Christian Bale (“Vice”)
Atriz coadjuvante
Regina King (“Se a rua Beale falasse”) 
Ator coadjuvante
Mahershala Ali (“Green Book – O Guia”) 
Roteiro
Peter Farrelly, Nick Vallelonga e Brian Currie (“Green Book – O guia”)
Filme estrangeiro
 “Roma”, de Alfonso Cuarón (México)
Animação
“Homem-Aranha no Aranhaverso”
Trilha sonora
Justin Hurwitz (“Primeiro Homem”)
Canção
“Shallow” (“Nasce uma estrela”)