Rodrigo Fonseca
Embora a conjugação de palavras, imagens e exumação de signos, em uma estrutura de puzzle ou (como dizia Cortázar) de “jogo da amarelinha”, faça parte do léxico cinematográfico de Jean-Luc Godard desde “A chinesa”, em 1967, a busca dele pelo osso dos símbolos não estacionou em procedimentos reiterativos: cada novo filme traz uma nova variável ao jogo de sentidos. Rodrigo Fonseca
Uma semana antes de conquistar uma Palma de Ouro especial, em Cannes, por “Imagem e palavra” (“Le livre d’image”), um colírio semiótico, construído como ensaio documental, para abrir nossos olhos sobre nossa subserviência às narrativas, Godard (aos 88 anos) deu uma entrevista via Facetime para explicar certas escolhas: “As filmagens deste projeto não foram ação, foram arquivos: preciso do passado para falar do futuro”. O passado ganha os contornos de “Johnny Guitar” (1954), faroeste de afirmação do feminino (ou do feminismo, pra parte respeitosa da crítica), numa aparição de Joan Crawford e Sterling Hayden. O western é de Nicholas Ray (1911-1979), diretor cujo humanismo desmesurado e a rejeição à ordem burguesa encantou Godard e seus colegas de Nouvelle Vague, o movimento que modernizou a prática cinematográfica na França, entre os anos 1950 e 60, num engajamento em causas políticas e revisões comportamentais. O fragmento de Ray entra como um farol numa colagem (a expressão godardiana por excelência de 2001 pra cá) de cenas de batalha, de terrorismos, de publicidades. A mesma iluminação se dá ao redor deum frame de “Tubarão”, de Spielberg, usado com ironia. Todas as citações cinéfilas, que vão se descontruindo conforme Godard vai superpondo a elas uma narração filosófica. “O som, no cinema, precisa ser pensado de outra forma, autônoma, como se fosse um organismo à parte da imagem. Complementar, claro, mas com significação em si”, defende ele. Mastigando e dilacerando signos jornalísticos ou ficcionais, o diretor cria uma linha de debate na qual questiona as representações acusatórias ao Estado Islâmico, para desnudar um discurso de construção de vilania e culpa, e confronta o onipresente imperialismo do cinema americano. Enfim, é o que o cineasta – nascido em Paris em 3 de dezembro de 1930, mas naturalizado suíço – sempre faz, desde “Acossado” (1960): seus experimentos são filme, são semiologia, mas são, antes de tudo, Godard, uma grife de digressões. E reações. O resultado plástico e o discursivo não têm, como espetáculo, o vigor de “Nossa música” (2004), o melhor longa dele neste século, mas há potência de sobra, a ser digerida aos poucos, sob azias morais.