Rodrigo Fonseca
Dois titãs unem forças em “Green Book – O guia”, mais lúdica das produções no páreo pelo Oscar 2019, lançado nesta quinta no Brasil. De um lado, há o novo Spencer Tracy: Mahershala Ali, hoje bombando na TV na terceira temporada de “True detective”. Do outro, há um gênio duas vezes indicado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, Viggo Mortensen, que concorreu antes pelo antológico “Senhores do Crime”, em 2008, e pelo doído “Capitão Fantástico”, em 2017.
Este ano, os favoritos ao prêmio de melhor ator da Academia são Rami Malek (por “Bohemian Rhapsody”) e Christian Bale (por “Vice”), mas os dois podem perder, diante de todo o brilho de Mortensen, um sexagenário astro de Nova York, criado na América do Sul (meio na Venezuela, meio na Argentina) por “Green Room – o Guia”. É uma comédia lúdica sobre conflitos raciais pilotada por Peter Farrelly, realizador de chanchadas como “Quem vai ficar com Mary” (1998) e “Débi & Lóide” (1994), que passou a ser vista como um potencial ganhador do Oscar de melhor filme depois de levar para casa o Producers Guild Award (PGA), o prêmio do Sindicato de Produtores no sábado. Há muita polêmica em torno desta fábula de US$ 23 milhões que já arrecadou cerca de US$ 45 milhões na venda de ingressos. Há uma grita nos EUA em torno do fato de ser uma história sobre segregação racial contada por um cineasta branco. Farrelly narra a jornada (real) de um pianista negro, Dr. Don Shirley, e seu motorista ítalo-americano brucutu, Tony Villelonga (Mortensen), pelo Sul dos EUA. Quem ganha o PGA tem fortes chances de ganhar o Oscar, pois os produtores têm uma expressiva massa votante na Academia. A ver… E a se avaliar seu simbolismo…
Cronista gráfico do american way of life, Norman Percevel Rockwell (1894-1978), pintor que eternizou a imagem feliz dos EUA, é a chave para o entendimento deste lúdico road movie de US$ 23 milhões, cuja bilheteria já beirava o dobro disso (US$ 46,7 milhões) antes de emplacar cinco merecidas indicações ao Oscar. Rockwell deu à posteridade um verniz de América: gente branca feliz, empapuçando-se de milkshakes e tortas. É na direção oposta desse retrato míope de si mesmo que a obra do diretor Peter Farrelly sempre operou. Em sucessos como “Debi & Lóide” (1994) ou cults como “Kingpin” (1996), ele e o irmão caçula Bobby desenvolveram uma estética on the road de negação da prosperidade inata a seu povo. Na maturidade de seu olhar para um país moralmente esgotado, Peter radicalizou, trilhando uma linha crítica pela vai do açúcar, não do azedume: “Green book” é um filme de proposição, de assopro na ferida fresca do racismo. É uma evocação de Frank Capra (1897-1991), um diretor que, diferentemente de Rockwell, filmava o sorriso da América, sem negar suas cáries, em clássicos como “A felicidade não se compra”. Filmando com secura, Farrelly faz do pianista negro Shirley (Mahershala Ali, perfeito) e do motorista brucutu Tony (Mortensen, um poço de carisma) dois heróis à la Capra, num filme sobre alianças. É uma evolução e tanta para um cineasta famoso por caça-niqueis.
A beleza no que há de lúdico em “Green Book” é tanta que faz pensar, com temor, no quanto nosso Brasil dito “inteligentinho” tem medo de filmes que não assumem o desastre e a desesperança no cerne de sua produção.