Rodrigo Fonseca
Proscrito, palavra de alarme, por vezes pode ser um adjetivo positivo, quando aplicada a um artista como o cineasta Neil Jordan, cuja reputação como um narrador autoral adulto com foco em temas passionais nunca foi arranhada, mesmo estando ele numa fase de vacas raquíticas em termos de sucesso comercial. “Obsessão” (“Greta”), seu mais recente trabalho, passou a arrebatar amores, numa prova de sua respeitabilidade. Estreia por aqui dia 13 de junho. No Brasil, Cecília Lemes costuma ser a dubladora habitual da parisiense Isabelle Huppert, a estrela do longa-metragem.
Abraçado pela televisão ao criar a série “Os Bórgias”, com Jeremy Irons, o cineasta irlandês foi atrás da diva francesa para assegurar excelência ao projeto, lançado durante o Festival de Toronto em setembro passado, onde foi bem acolhido. Reside nele toda a potência característica do realizador de “Traídos pelo desejo” (1992) em sua reflexão sobre perversão. Orçado em US$ 10 milhões, “Obsessão” brinca com os riscos do altruísmo nestes tempos de intolerância. Veja a cena: ao contar para sua colega de quarto que encontrou uma bolsa perdida no metrô e planeja sair em busca da dona, a jovem Frances (Chloë Grace Moretz) leva uma bronca de sua amiga, Erica (Maika Monroe), num sermão comportamental que evoca a cultura de paranoia dos Estados Unidos nos últimos 18 anos: “Você não sabe que bagagens largadas em espaços públicos são um indício de bombas?”.

Esse é o começo do novo longa de Jordan, um filme B assumido. É um começo de insanidade institucionalizada: o conceito que há de guiar a narrativa. Estamos diante de um suspense, uma trama de sustos. E esse assombro vem de atitudes fora da norma. Jordan, que encantou os anos 1980 com “Mona Lisa” (1986) e “Na companhia dos lobos” (1986) e chegou a seu apogeu em 1992, com o já citado “The Crying Game”, demonstra intimidade ZERO com a cartilha em que adentra. A prova disso é a gargalhada que contagiava a plateia em sessões nos EUA, em cenas que deveriam assustar e que dão um riso generalizado às multidões. Daí a classificação como B. Mas é um B de autor: o que põe de pé a história de Frances, acossada pela viúva má Greta (Isabelle Huppert, provocativamente dúbia em cena), é o estudo sobre perversão que Jordan empreende a partir de situações que são arquetipais.
Com pressão crescente, “Obsessão” não é um thriller clássico. É semiologia. E um estandarte do Feminino. Fetiche de Jordan, Stephen Rea está em cena, numa participação quase jocosa. O mesmo se dá com os demais homens que passam pelo caminho (profissional ou familiar) de Frances. Eles se limitam a poucas falas e gestos pálidos. A exceção talvez seja o supervisor de modos grosseiros do restaurante onde ela trabalha: este tem um ataque de nervos quando percebe o incômodo de sua funcionária diante da presença de uma senhora misteriosa, a tala Greta, que começa a segui-la por todos os cantos. Mesmo da parte de Greta, o coeficiente masculino é nulo: há a viuvez em jogo. São as mulheres – sobretudo Erica, que Maika interpreta com uma firmeza de rocha – que farão a diferença.
Tendo o prolífico Seamus McGarvey no comando da fotografia, Jordan aposta em tons claros, pastéis, amarelados para ilustrar o colorido delicado de um mundo que abre mão da sutileza ao tombar para a perda da lucidez. Greta é uma psicopata clássica: Isabelle faz dela um Jason de rosto maquiado, com direito a dedos cortados e armadilhas em forma de baú. Greta gosta de aprisionar jovens em sua casa, como se fossem bonecas. Atrai as moças a partir de bolsas perdidas em veículos coletivos. Aquelas que forem boas de coração irão atrás da dona, caindo no alçapão do risco. Frances é uma dessas figuras bondosas. Mas tem um limite. E tem espírito aguerrido. Não é mocinha de folhetim e, sim, mulher empoderada. O que vemos ao longo de 1h38 é um rocambolesco desfile de perigos, que Frances encara nas raias do pavor. A resistência dela não exclui o medo. Mas ela resiste, o que irrita Greta e tira a vilã de sua zona de conforto. Nesse risco mútuo, Jordan faz um estudo psicanalítico sobre a generosidade e seus riscos, num debate sobre o individualismo em nossos dias.
É uma pena que Jordan não goze mais do respeito de que desfrutava no passado. Em 1994, seu “Entrevista com o vampiro” foi um fenômeno popular que trouxe prestígio pra Tom Cruise e fama pra Brad Pitt. Depois veio “Michael Collins – O Preço da liberdade” (1996), épico que deu a ele o Leão de Ouro de Veneza. No ano seguinte, “Nó na garganta” garantiu o Urso de Prata de Melhor Direção a Jordan. Mas, nos anos 2000, fracassos de bilheteria como “Lance de sorte” (2002) e “Ondine” (2004) fizeram sua carreira descarrilhar. Talvez o feérico “Obsessão” possa restaurar a glória de seu nome. Seria merecido.