Rodrigo Fonseca
Manguari Pistolão, mítico anti-herói da ressaca ditatorial brasileira dos anos 1970, vai ganhar a TV aberta na madrugada deste domingo, logo após a dobradinha “Zero 1” e “Altas horas”. À 0h50 do dia 16, a TV Globo exibe o corta-pulsos “Rasga coração”, uma produção gaúcha, baseada em um marco da dramaturgia brasileira, que tomou de assalto o coração da crítica de todo o país. Vinda do Rio Grande do Sul, mas ambientada em Copacabana, o longa-metragem surpreendeu formadores de opiniões e espectadores com sua poética melancolia política. É algo na linha de “Nós que nos amávamos tanto” (1974), de Ettore Scola, realizador com quem o cineasta gaúcho Jorge Furtado aprendeu um caminho cinematográfico: o das “comédias tristes”. Não há muito lugar para o riso na história (e na História) que Furtado leva agora ao circuito. Mas tem Scola de Ettore nela: o senso de que o sólido desmanchou no ar da “mais-valia” faz um bom tempo. Um tempo com cheiro de chumbo.

Lançado na Mostra de Cinema de SP de 2018, o filme ganhou resenhas elogiosas de toda a imprensa de seu país, o que vem refletindo na adesão do público ao novo longa-metragem de Furtado. Há quase 30 anos, ele levou à Europa um curta-metragem que fez História no formato: “Ilha das Flores” (1989). Agora, depois de uma leva de incursões em tramas ficcionais nas raias do humor e da dor, como “O homem que copiava” (2003) e “Saneamento básico” (2007), ele se volta para feridas morais de sua geração revendo o derradeiro texto do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (1936-1979). Sua peça foi batizada em referência a uma canção de Anacleto de Medeiros e Catulo da Paixão Cearense. Nela, Vianinha traduziu as desilusões políticas do Brasil dos anos 1970. Filmada no fim do ano passado, a transposição do espetáculo para o cinema do traz Marco Ricca (astro do cult “Aos teus olhos”) no papel de Manguari Pistolão, um ex-militante que se vê defasado em suas crenças éticas e afetivas ao questionar as escolhas de seu filho (Chay Suede, impecável no papel do rebelde vegetariano Luca). Drica Moraes, Luisa Arraes e George Sauma integram o elenco do longa, que tem o ótimo João Pedro Zappa como o jovem Manguari.

Taí um dos mais dolorosos desabafos geracionais de nosso cinema, com gosto de Bianchi (“Romance”) e de Ugo Giorgetti (“O Príncipe”), mas com o léxico furtadiano nas idas e vindas no tempo, da montagem. Esta visita ao texto de Vianinha se impõe como (bom) cinema pela luz realista da câmera de Glauco Firpo. E há uma potência trágica em total afinação com as angústias do Contemporâneo no Lorde Bundinha de George Sauma – em uma atuação que nos distancia do passado e dá atualidade onde poderia reinar a melancolia. Mas a apoteose cabe a Marco Ricca, que nos dá uma atuação vivíssima, doída e reflexiva ao escavar múltiplas camadas morais em Manguari Pistolão, um dos maiores personagens da Arte Brasileira. Sob a batuta de Jorge Furtado, Ricca faz de Manguari um sofrido resistente, numa dialética entre o sonho e o dever, expressa em uma atuação digna de estudo, por sua contenção, pela atenção lúcida a qualquer esquematismo e pela poesia. E um par de frases, “Pai, posso te dar um beijo?” e “Sem rancor”, há de ecoar pelo nosso imaginário cinéfilo por anos.