RODRIGO FONSECA
Preparando um tributo ao espanhol Pedro Almodóvar, que, na esteira da consagração de seu recém-lançado “Dor e glória”, vai receber um Leão de Ouro honorário, o Festival de Veneza abriu esta semana anunciado a escolha da diretora argentina Lucrecia Martel como a presidenta do júri de sua 76. edição, de 28 de agosto a 7 de setembro. Sua escolha para o cargo é um reconhcimento de uma das mais singulares carreiras do cinema latino-americano. Seu último filme, “Zama”, fez sua estreia mundial no Lido, em 2017, em projeção hors-concours.

Nele, o protagonismo é de um homem cordial. Cordial, mas de uma cordialidade com aquele senso de obediência utilitária, apontado sociologicamente por Sergio Buarque de Holanda (1902-1982), Zama – a figura central do longa-metragem homônimo de La Martel, que teve coprodução da mineira Vânia Catani – é uma espécie de Policarpo Quaresma na colonização espanhola. Não entra no delírio do ufanismo patriótico, ao contrário do que faz o personagem de Lima Barreto (1881-1922), mas, como ele, Zama é o único herói possível (mesmo que num heroísmo involuntário) para uma pátria moldada na rapinagem. 
No quarto longa-metragem da diretora de “A menina santa” (2004), Zama, inspetor da Coroa de Espanha, interpretado por Daniel Giménez Cacho (de “Má educação”) no limite da contenção de gestos, é a única pedra no caminho do mecanismo de corrupção estabelecido entre a metrópole e suas colônias, num século XVIII maculado por banditismos sociais. 
Não é da natureza inercial dele combater os corruptos, mas sua retidão no dever atrapalha a demanda por vista grossa feita por seus superiores. E embora saiba se adaptar às necessidades do meio, pela sobrevivência dos fortes e a resignação dos fracos, Zama é a encarnação do burocrata kafkiano: leva às ultimas consequências as exigências que as engrenagens da máquina do Poder necessitam para sobreviver. Mas sabe que isso irrita aqueles que, longe da Europa, estabeleceram um estado de exceção do Mal, ou seja, o Estado da Propina, da Derrama, do Caixa Dois. 

Não por acaso, o filme – uma expedição ao passado colonial das Américas, organizada a partir de uma exuberante engenharia visual na fotografia do português Rui Poças e na direção de arte da pernambucana Renata Pinheiro – tem DNA brasileiro, tendo sido coproduzido pela Bananeira Filmes da já citada Vânia (mesma .cia responsável por “O palhaço”) e estrelado por vários atores nacionais (com destaque para Mariana Nunes e Evandro Melo). Não há ninguém para entender, na carne, a dor de um pretérito imperfeito de corrupções do que nós, do Brasil. Até porque, um dos desejos da diretora, é expor essa imperfeição de gênese de nosso continente sob uma ótica multinacional: o que dói aqui também dói na Argentina de Martel, assim como na paraguaia Asunción, para onde o Policarpo de Lucrecia é transferido, na caça por um terrorista chamado Vicuña Porto. 
Como um castigo por seu exercício burocrático de olhos abertos ao que não deveria ter visto, Zama é obrigado a caçar Vicuña nos rincões praianos do Novo Mundo sul-americano, aproximando-se de figuras estranhas, como o mercenário vivido por um inspiradíssimo Matheus Natchergaele. É um homem que fascina, mas, ao mesmo tempo, aterroriza Zama, como tudo em sua volta, nas horas que antecedem seu sonho de regressar ao posto de cidade grande que tanto deseja ocupar. 
Até a caça ao bando de Vicuña começar, Lucrecia faz uma espécie de geografia, física e humana, dos feudos que se constróem na colônia, cimentados pela subserviência, pela prevaricação e pelo jeitinho ibérico de driblar convenções morais. Parece uma estrutura nova para uma cineasta acostumada ao intimismo e uma investigação de sentimentos que beira o existencial, como vimos em O Pântano (2001) ou “A mulher sem cabeça” (2008). Mas há algo de familiar, para além das marcas autorais de direção – a principal delas é o cuidado dela com o desenho de som, dando a ruídos e engasgos o peso de uma fala.  
O ponto mais comum é a contenção, assunto central de sua obra, que completou 30 anos de cinema em 2018: em 1988, “El 56”, um curta-metragem de animação, marcou a estreia dela na telona; ainda que Lucrecia considere outro curta, “Rey muerto”, de 1995, como o primeiro filme genuinamente seu como realizadora.
Em seus dramas sobre mulheres da província de Salta, ambientados nos dias de hoje, o foco do drama são verdades contidas: a opção em se represar vontades. “Zama” é um filme de época. Um filme sobre um homem. E um filme sobre os efeitos cancerígenos do dinheiro. Mas, na prática, o ontem que o longa recria (com a magistral luz de Rui Poças) não é muito distinto das zonas pantanosas flagradas pela cineasta nas mulheres dos nossos dias e nos homens que as sufocam.
O relato histórico deste seu precioso novo filme dispensa cartilhas da narrativa épica – tão comum a reconstituições – e aposta numa psicologia do impasse, na tentativa de entendimento acerca da burocracia interna de Zama, estudando que carimbos legitimam seus medos e suas perversões. É um estudo da alma, com a crueza desconcertante que faz de Lucrecia um patrimônio cinéfilo da América Latina e com um ritmo de contemplação do Espaço e do silêncio a seu redor que consagra a montadora Karen Harley como uma de nossas mais criativas editoras de imagem.  
“Zama” é coproduzido pela El Deseo dos irmãos Agustín e Pedro Almodóvar, o homenageado do ano de Veneza. A consagração do longa e da radiante artista por trás de sua realização representa a coroação de um olhar feminino que se depurou ao longo dos anos, a partir da análise de nossas autossabotagens e dos interditos morais à nossa volta, traduzidos aqui  no olhar atônito de Zama diante de uma América de desesperanças.