RODRIGO FONSECA
“Quem conhece a tempestade enjoa na calmaria” é uma das frases que celebrizaram o ritual de autoesculhambose hepática (com gelo de dois dedinhos d’água) vivido por Dorothy Parker (1893-1967). Viveu de porre(s) enquanto datilografava pérolas do conto anglo-americano, como “A Grande Loura” (1929), consagrando-se como rainha das short stories. Sua sede de brandy e Scotch Whisky foi famosa nas rodas literárias e em Hollywood, para onde escreveu roteiros impecáveis. O barco bêbado na qual ela naufragou sua saúde e sua farta disposição para sentar o dedo nas teclas da Olivetti deu carona para muitas grandes vozes autorais das Letras, inclusive no Brasil. Barbara Maria Vallarino Gancia, expressão oracular do jornalismo brasileiro, famosa pelo estilo mordaz e pela franciscana economia de advérbios, foi uma das passageiras desse Titanic perfumado a Pitu. Os 30 anos em que entornou pesadamente covalências etílicas capaz de desafiarem a mais precisa das estequiometrias foram confessados por ela generosamente em 2018, no livro “A Saideira”. Mais adiante, essas décadas de Caninha da Roça foram convertidas numa peça teatral com a qual Marisa Orth embriaga a nossa vontade de potências cênicas. “Bárbara”, título do espetáculo em cartaz no Teatro XP, no Jardim Botânico, no Jockey Club, é substantivo (nome próprio, agudamente acentuado) e adjetivo, indicando a peleja do santo guerreiro da sanidade contra o dragão da maldade da dependência química.
Saracoteando no palco do XP sob a direção nada geométrica (porém, assim mesmo, muito elegante) de Bruno Guida, Marisa Orth ziguezagueia como Coelho Ricochete pela cena, em retas, curvas e diagonais nada apolíneas. Cada avanço é uma lembrança que se desfolha qual cebola numa narrativa espiralada, na qual cada virada tem lágrimas em crisálidas, quietinhas, à espera de um gatilho. Contudo, como o percurso da Barbara dramatizada é feita por um ímã de gargalhadas como La Orth (ô atriz pra dominar as manhas da comédia, Jesus!) não sobra ao pranto um só pau pra dar no gato. Tem(os) tristeza ali, sim, tem(os) dor, tem(os) um chorinho (de cana e de amargura), mas vinga o espírito zombeteiro da perseverança. É um desabafo que trilha o caminho resiliente do “Só por hoje!” e não descarrilha.
Difícil não lembrar do processo implosivo do roteirista Ben Sanderson, papel que deu a Nicolas Cage um Oscar, em 1996, por “Despedida em Las Vegas”. Sanderson acreditava que a vida tem dois métodos de punir quem está no jogo. De alguns, ela tira tudo à prestação. Dele, a vida tirou tudo à vista. Com Gancia, a perda de uma ex-namorada, a erosão da confiança de sua chefia e a ruptura da paciência de seu pai faz parte de um placar inglório. Placar que ela soube virar. O texto afetuoso que Michelle Ferreira construiu a partir de “A Saideira” é a cartografia sensível dessa virada.
Envelopado por Gringo Cardia numa direção de arte… sóbria (com o perdão do trocadilho)… de extrema eficiência plástica no quadro, “Bárbara” fala de Barbara (sem acento, mas) com açúcar. A cenografia de Anna Turra tem seu charme ressaltado pelo desenho de luz de Guilherme Bonfanti. Coruscante ao longo de toda sua duração (enxuta e precisa como relógio helvético), a peça tem seus apupos de sentido a cada solfejar da trilha original de André Abujamra. Trajada com os figurinos de Fause Haten, Marisa explode em cena improvisando cacos (sobre reações da plateia ou sobre os marsupiais da fauna do Jockey) e desenhando um relato trincado numa onda boa. Vomita vez ou outra a ressaca da recordação (“Eu gosto de amar. O ruim é quando não amam a gente de volta”) e a bile do esquecimento (“Se eu não sinto, eu não fiz”). Nessa fricção das almas alcoólatras entre a dádiva de esquecer e o martírio de ser lembrada, ela dá mais uma estocada em Dorothy Parker, que, borracha, escreveu: “Posso repetir para mim mesma devagar e tranquilamente, uma lista de belas frases de mentes profundas – se eu conseguisse lembrar de uma dessas malditas coisas”.