Rodrigo Fonseca
Inaugurado esta manhã na Espanha, com uma projeção do drama “Blackbird”, do diretor inglês Roger Michell, o 67º Festival de San Sebatián tem um cardápio de quase 200 longas-metragens em sua programação, incluindo o esperadíssimo “Zeroville”, de James Franco: o que não tira o protagonismo do curta “Nimic” sob os holofotes do evento. Com projeção agendada para esta noite, a produção veio do Festival de Locarno repleta de elogios, recauchutando o prestígio do ator Matt Dillon. Dada a procura por lá, o filme periga se tornar a sensação mais disputada deste fim de semana, graças à grife por trás de sua realização: no caso, o nome Yorgos Lanthimos. Neste ano em que chegou aos Oscars, indicado por “A favorita” à estatueta de melhor direção, o cineasta grego de 46 anos traz ao evento espanhol um experimento de 12 minutos, com Dillon no papel central. É a história de um inusitado encontro de um cellista com uma força estranha, em pleno metrô. “Prefiro sempre pensar que o tipo de cinema que faço é uma reflexão sobre justiça e sobre escolhas. E vejo o inusitado como uma comédia”, disse o diretor ao Lab Pop em Veneza, em 2018, quando “Nimic” ainda estava no papel.
Aquele era um momento em que Dillon estava às voltas com Lars von Trier e seu “A casa que Jack construiu” (“The house that Jack built”), badalado aqui na Escandinávia, em especial na Cineamteket de Copenhagen, onde o Laboratório Pop está. Há uma caixa de DVDs com a obra de Von Trier em destaque na cidade, o que atrai o foco para o último longa dele, com Dillon em cena.
Fora toda a polêmica que garimpou para si em Cannes, em projeções com gente desmaiando diante de sua violência explícita, “A casa que Jack construiu” esbanja esmero estético e explora enigmas psicanalíticos que podem deliciar plateias. Mas a cereja deste bolo recheado de sangue por Lars von Trier é o desempenho de um ator outrora encarado como muso. Matt reluz, soberano, no novo longa-metragem do provocativo diretor de “Dançando no escuro” (2000) – debruçado aqui sobre o cotidiano de um psicopata. Exuberante em termos plásticos, esta produção de € 8,7 milhões foi rodada na Suécia e na Dinamarca, trazendo a apoteose do homem que foi objeto do desejo cinéfilo na década de 1980, quando se lançou pelas mãos de Francis Ford Coppola – em “Rumble fish – O selvagem da motocicleta”, de 1983 – como símbolo de rebeldia juvenil (e de potência sexual). Dillon celebrizou-se no Brasil como fetiche debaixo dos caracóis dos cabelos de Caetano Veloso. Há cerca de 35 anos, o cantor fez do sex-appeal de Dillon um estandarte de virilidade – isso até Leonardo DiCaprio tomar seu lugar, em 1998.
“Eu soube dessa história do Caetano, que é um músico incrível, por uma namorada minha ligada à realidade brasileira. Tudo o que posso dizer sobre meu trabalho de ator é que eu nunca desisti: eu tento aprender sempre e aproveitar oportunidades de estar perto de grandes diretores”, disse Dillon ao LABORATÓRIO POP em Cannes, em 2018. “O caminho é esse: insistir e confiar sempre em si mesmo”.
Em “The house that Jack built” (título original), coube a ele – que hoje tem 55 anos – dar credibilidade aos TOCs e à frieza glacial de um maníaco homicida, encantado pela violência desde criança, que, na idade adulta, diverte-se assassinando mulheres e congelando homens em um freezer GG. São 155 minutos de crimes escabrosos e trapalhadas relativas à mania de limpeza do assassino vivido por Dillon: numa conversa com um sábio, Virgílio (vivido por Bruno Ganz, lendário ator alemão, de “Asas do desejo”), Jack passa em revista seus feitos mórbidos ao longo de 12 anos de impunidade. É um anti-herói alinhado com o niilismo de Lars von Trier, realizador que caiu em desgraça na Croisette ao fazer piadas antissemitas sobre Hitler no Festival de Cannes de 2011, enquanto lançava “Melancolia”.
“Um dia eu perguntei por que Lars me convidou, oferecendo um protagonismo num projeto de peso, e ele respondeu apenas: ‘Gosto da sua expressão facial. Seu rosto é interessante’. Vou falar mais o quê”, ironiza Dilon, que chegou a ser indicado a um Oscar, em 2006, por sua brilhante atuação em “Crash – No limite”, como um policial racista atormentado pela doença do pai. “Tive nas mãos personagens que desafiam a barreira da tolerância, indefensáveis em seus atos. Mas é necessário separar o joio do trigo. É preciso buscar a humanidade deles. O que Jack faz me arrepia, é imperdoável. Mas há uma doença nele, uma neurose, que merece ser bem explorada. E aí que nasce a relação de respeito com essas figuras tortas ou torpes”.
Quando a indicação ao Oscar chegou, Dillon andava em baixa, longe dos holofotes. Acabou perdendo a estatueta para George Clooney (laureado por “Syriana”), mas, paparicado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood,ele parecia estar no topo de novo, o que não durou muito. Mas o paparico devolveu a ele o gostinho de glória da juventude. “Acabei de fazer um filme chamado ‘Taste of honey’, com Nick Nolte. Quando eu comecei, ainda garoto, o galã de que o cinema precisava era um cara intenso como Nolte. Tinha beleza, mas tinha tensão, tinha chama interna”, lembra Dillon, que começou a atuar em 1979, tendo despertado a atenção da crítica no ano seguinte, em “Cuidado com meu guarda-costas”.
Aos 18 anos, ele caiu nas graças de Coppola no set de “Vidas sem rumo” (1983), e, dali, foi ser o irmão caçula de Mickey Rourke em “Rumble fish”. O sucesso de seu perfil à la James Dean foi tanto que ele passou duas décadas brilhando na seara dos cults, estrelando joias: “Drugstore Cowboy” (1989), “Vida de solteiro” (1992), “Um sonho sem limites” (1995), “Ciladas da sorte” (1996) e “Garotas selvagens” (1998). Mas foi perdendo, filme a filme, sua aura de “galã sexy atormentado”, deixando de empolgar os estúdios – e há fofocas falando de litros e litros de álcool perdidos em seu sangue, nesses dias de vacas magras. No fim dos anos 1990, Dillon ensaiou uma virada: roubou a cena de Ben Stiller, coadjuvando no fenômeno de bilheteria “Quem vai ficar com Mary?” (1998), protagonizando uma antológica cena de luta contra um cachorro. Mas a autoparódia que fez ali de seu jeito viril, só foi bem vista, à época, pelos fãs de comédia. Aquela interpretação desgastou sua imagem apolínea aos olhos de seus fãs do passado.
“É curioso notar como Lars evita colocar tragédias no histórico de Jack, em seu novo filme, para evitar qualquer justificativa para seus atos. Não há mágoas que o impelem a matar e sim uma pulsão destruidora, disfarçada sob seus modos tímidos e ingênuos”, define Dillon, que, na tela, brutaliza a personagem de Uma Thuman com uma fúria que chocou Cannes. “O maior desafio no set nem era Lars, famoso por seu jeito autoritário. Eu já tinha ouvido de muitos colegas o quanto Lars é… digamos… peculiar. Mas a gente se entendeu. Ele exigiu de mim o horror. O difícil era lidar com essa força destruidora. Tinha horas em que eu mesmo me chocava. Tinha horas na filmagem em que eu precisava respirar e pensar: ‘Não sou eu, é o Jack’. Não pode haver moralismo”.
Este ano, o presidente do júri de San Sebastián é o irlandês Neil Jordan. Ele vai coordenar um time de jurados na avaliação de uma leva de 17 longas-metragens, começando por “Blackbird”, de Roger Michell, que abre o evento. O Brasil está no páreo com “Pacificado”, drama sobre o ato contínuo de resistência de quem vive em periferias cariocas. A direção é de Paxton Winters e a produção de Darren Aronofsky, com Shirley Cruz, Débora Nascimento e José Loreto no elenco. Mas a maior aposta para o prêmio principal, a Concha de Ouro, é o já citado “Zeroville”, de James Franco, que traça um painel dos bastidores de Hollywood em 1969.