RODRIGO FONSECA
Incubadora de talentos, a população carcerária de “Carandiru”, um dos maiores sucessos da obra de Hector Eduardo Babenco (1946-2016), visto por 4,7 milhões de pagantes há 20 anos, fez fluir uma série de grandes carreiras. Carreiras que hoje amadurecem nas múltiplas plataformas de experimentação para atores, com especial destaque para Milhem Cortaz. Popularizado ainda mais após o êxito de “Os Outros”, na Globoplay, no papel de Wando, ele participou do cultuado “Olhos de Vampa” (1996), de Walter Rogério, antes de ser escalado para encarnar o assassino Peixeira na imersão de Babenco na Casa de Detenção São Paulo. Ali, em 2003, inaugurou seu espaço no imaginário cinéfilo de seu país, fazendo da baba um traço de demarcação de fúria ou loucura para o corpo de seus personagens. Escorre baba pelo palco do Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB – RJ) onde ele empresta sua ossatura para “Diário de um Louco”, de Nicolai Gogol. E o faz sob a direção de Bruce Gomlevsky. Frisa-se a saliva, pois suas gotas adquirem a dimensão de fractais, desenhando no ar, numa geometria incalculável, o desvario de um personagem que vai ser fragmentado ao longo da autopsia de sua sanidade.
Apocalíptico como os mundos das ficções científicas dos anos 1980, o estonteante cenário de Nello Marrese utiliza esqueletos de guarda-chuvas para compor um quarto onde mora o escafandrista de si mesmo eletrificado a 220 volts por Milhem em cena. Lá ele toma sopa e come banana com uma fome de anteontem, mascando e falando, qual um fala-a-dor. É um perímetro de intimidade, que deveria implodir, numa leitura corriqueira de Gogol. Em geral, a dinamite Gogol vai de fora pra dentro. Mata e seca o rato da dor. Mas na montagem do CCBB, Gomlevsky leva Milhem a explodir, para fora, em 3D, com direito a avanços do monólogo para a plateia, num aperto de mão ou numa encarada selada na troca de olhares. A luz de Elisa Tandeta, operada por Rodrigo Miranda, sublinha esse avançar, assim como Glauce Guima, ao operar o som com destreza, sabe o friso certo para os vulcões que entram em erupção no palco. É compreensível a crônica de costumes de uma Rússia em transformação que o homem diante do público constrói, ao tentar presentificar um tempo que pertence ao Ontem. Mas no tempo do Hoje, do Agora, a belíssima operação Gomlevsky-Cortaz esvazia a palavra cronista de seu absolutismo opressor, espatifando vogais e consoantes, para deixar que a musculatura de Milhem, com o apoio de sua baba, leve a gente ao inconsciente liquefeito de um sujeito que já não difere mais os verbos “ser” e “delirar”. No amalgama do delírio com o dia a dia, nasce uma realidade traiçoeira, uma cobra que nos dá seu bote sob o veneno de um ator em estado de graça. Sua gargalhada de Coringa traceja a continuidade de uma detonação que celebra o indivíduo onde o teatro parece estar mais preocupado com a vida em sociedade.
Sua composição conversa com os feitos de Milhem no curta-metragem “Cavalo” (2010), de Joana Mariani, também centrado numa consciência que trota, sob os cascos de uma nova linguagem. Uma linguagem avessa a gramáticas do comportamento social. Tomara que na bem-sucedida retomada da trajetória teatral de Milhem, um de seus melhores filmes, “Meu Mundo Em Perigo” (2007), que lhe rendeu o troféu Candango de Melhor coadjuvante em Brasília, não volte à ribalta, nos streamings.