Myrna Silveira Brandão, de Nova York

 

Depois de lançado com sucesso em Cannes na Semana dos Realizadores e ganhado o prêmio da Fipresci no Festival Internacional Novos Horizontes da Polônia, “As Mil e uma noites”, de Miguel Gomes, foi mostrado na prévia para a imprensa da 53ª edição do Festival de Nova York, onde o diretor português já tinha tido uma ótima receptividade em 2012 com “Tabu”.

 

O novo filme de Gomes é um épico contado em três atos: O Inquieto, O Desolado e O Encantado, com duração total de 6 horas e 21 minutos. Essa verdadeira epopeia portuguesa tem como base a estrutura narrativa do clássico persa As Mil e uma Noites.

 

Trabalhando um ano inteiro com uma equipe de jornalistas que enviavam notícias de todo o país sobre a atual crise social e econômica em Portugal, Gomes transforma eventos reais numa fábula, e a expressa através da voz de Scheherazade (Crista Alfaiate), a mítica personagem do conto persa.

 

As histórias mirabolantes de um país arruinado pelo comando de “belzebus”, como são descritos os governantes de Portugal, servem de substituição aos contos narrados por Scheherazade para entreter o cruel rei Shariar e preservar sua vida.

 

O primeiro ato, O Inquieto, mistura material documental sobre desemprego e eleições com visões surrealistas de baleias explodindo e galos cantantes. O segundo, O Desolado, é contado como um drama Brechtiano num julgamento ao ar livre no qual os testemunhos ficam cada vez mais absurdos. O terceiro, O Encantado, talvez seja a parte mais excêntrica e mais encantadora quando a história de Scheherazade se mistura a uma crônica de um caçador de pássaros na área de Lisboa.

 

O diretor faz questão de ressaltar que seu filme não é uma adaptação do conto persa.

 

“A ideia era fazer coincidir dois objetivos, criando um dispositivo cinematográfico que se aproximasse da estrutura do livro. Tenho com ele uma relação que vem da adolescência. Queria construir algo que fosse tão rico quanto As Mil e Uma Noites, com todas as suas bifurcações ficcionais e que, ao mesmo tempo, fosse uma radiografia do estado de alma de um país, durante o período de um ano, entre agosto de 2013 e agosto de 2014, quando Portugal viveu – e continua a viver – uma grave crise econômica e social”, ressalva Gomes, dando sua explicação resumida dos três atos.

 

“O primeiro chama-se Inquieto porque há motivos de inquietação que vão surgindo às personagens em várias histórias. O segundo O Desolado porque já passou a inquietude. Há qualquer coisa que parece estar perdida e partida sem possibilidade de reerguer-se. Por fim, O Encantado é a memória de cada um dos personagens e traz a lembrança de outra cidade. A maior parte desses personagens nasceu em bairros de lata (favelas) e foram realojados em “bairros sociais”, que não gostam, e sentem saudades dos locais em que nasceram”, conta.

 

O método da construção do roteiro é totalmente inovador, bem como o processo de filmagem adotado pelo diretor e sua equipe.

 

“Três jornalistas recolhiam informações sobre tipos variados de acontecimentos e informavam ao “comitê central”, um grupo que existe desde “Tabu” e que é constituído pela equipe nuclear do filme. Essa equipe deveria preparar o roteiro, que poderia surgir da evocação de determinada história ou determinado acontecimento real, transformando-o numa ficção. Estávamos ancorados na realidade do que acontecia no país”, detalha Gomes, que não concorda que seu filme possa ser chamado de militante.

 

“Filmes militantes tentam convencer-nos de que aquilo é bom, mas para mim é difícil tentar impor meus valores aos espectadores. Além disso, a fantasia aqui não é algo que escape à realidade, ela é contaminada pelo contexto político e por uma espécie de estado de alma que o filme tenta captar de diversas maneiras, em diferentes momentos”, reafirma.

 

800

 

Este extraordinário filme, um tríptico político/sociológico amargo, coloca Gomes na liderança de uma nova onda cinematográfica portuguesa extremamente criativa e inovadora.