RODRIGO FONSECA
Incluído nos 45 minutos do segundo tempo na seleção de San Sebastián, numa vaga destinada a um “filme surpresa”, “Coringa”, de Todd Phillips, o ganhador do Leão de Ouro de Veneza, é “o” assunto da cidade espanhola nestes momentos que antecipam o encerramento de sua 67ª edição. A projeção do visceral e sombrio espetáculo de atuação de Joaquin Phoenix nas ruas de Gotham City vai ser neste sábado, antes da entrega de prêmios pelo júri presidido por Neil Jordan, diretor irlandês respeitado por pérolas como “Traídos pelo desejo” (1992). Estima-se que o longa-metragem brasileiro “Pacificado”, de Paxton Winters, possa ser premiado, ainda que o favoritismo esteja com “The Other Lamb”, da polonesa Malgorzata Szumowska. Mas o papo na região basca é a exibição da polêmica narrativa sobre a gênese do Palhaço do Crime, em uma trama ambientada em 1981, na qual Bruce Wayne, o Batman, é ainda um menino.
No Lido, Phoenix foi um tanto blasé ao falar do filme com a imprensa e, em outros locais, teve reações destemperadas como abandonar uma entrevista que cogitava o teor de tumulto associado ao longa. Em Veneza, com um cigarro na mão e um fone na outra, para entender perguntas em línguas que não o Inglês, o ator (cotado desde já ao Oscar 2020) deixava seu humor flutuar sempre que as perguntas caiam para o lado pessoal, perdendo o foco de seu (assombroso) desempenho como o inimigo nº 1 do Batman. Sua atuação como Arthur Fleck (o alter ego do Coringa) foi descrita como “monumental”, “avassaladora”, “digna de prêmios” em múltiplas línguas. Já o longa-metragem, que narra a origem do personagem sem poupar nas doses de brutalidade, foi chamado de “o Apocalypse Now dos filmes de HQ”, em referência ao aclamado épico sobre o Vietnã de Francis Ford Coppola. Só que a guerra de “Joker” (título original desta produção de US$ 55 milhões) é nas ruas de Gotham. Uma Gotham que lembra a Nova York de “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese, produtor do longa.
“Passamos por quadrinhos como ‘A Piada Mortal’ como referência, mas tentamos criar um Coringa novo, do Joaquin. A gargalhada é o que emerge da figura de Arthur, por isso, eu pedia para que o Todd avaliasse bem como eu ria, para ver se funcionava, pois eu não podia fingir aquela risada. Não há como um definir esse personagem. Tudo o que eu queria era inviabilizar rótulos acerca dele, classificações prévias. Não queria que um psiquiatra conseguisse decifrá-lo ao analisar seus modos”, explicou o ator, que já concorreu ao Oscar com “Gladiador”, em 2001; “Johnny & June, em 2006; e “O mestre”, em 2013, mas nunca levou a estatueta.
“Há uma luz em Arthur. Tem uma música dentro dele. O que me interessou nesse trabalho foi poder explorar o personagem do meu jeito”, disse Phoenix em Veneza, para justificar a decisão de apostar no criminoso criado em 1940, pelo cartunista Jerry Robinson (1922-2011).
Ao longo de 80 anos de Batman nas HQs, o Coringa já contou com o talento de Cesar Romero (na série do Homem-Morcego dos anos 1960), de Jack Nicholson (em 1989) e de Heath Legder (em 2008, em atuação coroada postumamente com o Oscar de coadjuvante). A leitura de Todd Phillips (realizador da franquia “Se beber, não case”), produzida por Scorsese, mostra Arthur Fleck como um comediante que trabalha como palhaço nas ruas e em hospitais de crianças. Mas ele tem distúrbios mentais (expressos na forma de uma risada descontrolada) que se agravam conforme sua carreira naufraga, sua mãe adoece e um apresentador de TV (Robert De Niro, numa participação genial) faz troça de sua imagem.

Dos filmes das mostras paralelas de San Sebastián, vale destacar o enorme sucesso popular de “Les Misérables”, de Ladj Ly (França). De descendência maliana, este realizador francês com carreira de ator e de documentarista, mergulha na ficção a partir de um paralelo com a literatura de Victor Hugo, falando sobre um trio de policiais que se envolvem num conflito com a população de um subúrbio de Paris, com população majoritariamente negra. É a melhor montagem de todos os candidatos à Palma já exibidos: nervosa, mas aberta à reflexão das contradições sociais. Ganhou o Prêmio do Júri em Cannes, empatado com “Bacurau”, um dos maiores sucessos do cinema brasileiro na atualidade.
Também brilha por San Sebastián o ótimo “Zombi Child”, de Bertrand Bonello. Espécie de “Carrie, a estranha” misturado com .docs do Arte sobre macumba, o novo filme do realizador de “Nocturama” (2017) trança dois tempos (os anos 1960 e a atualidade) e dois espaços (o Haiti e a classe média francesa) a partir de um grupo de alunas adolescentes que montam uma sororidade de estudos literárias e têm contato com os mistérios ocultos de um ritual de zumbificação usado em trabalhos servis na América Central. Uma das estudantes pede a uma imigrante haitiana que exorcize seus males de amor por um namoradinho, o que deflagra um processo de assombro. A filmagem dos rituais de sincretismo afro ultrapassam os males da alteridade.