RODRIGO FONSECA
Ao construir sua Comédia Humana, Honoré de Balzac (1799-1850), um jornalista, afirmava: “O homem começa a morrer na idade em que perde o entusiasmo”. Um de seus (melhores, apesar de pouco citado) livros, “Código dos Homens Honestos” (1825) celebra a força do raciocínio pícaro – ou, à boca miúda, a malandragem – como estratégia de sobrevivência num mundo no qual o Estado é uma estrutura ausente. Apelidado de “a arte de não se deixar enganar por larápios”, essa aula balzaquiana de cinismo sentenciava o desamparo estatal como crime maior da sociedade e justificava qualquer “jeitinho” como escusa para driblar a inadimplência do Poder. Numa perspectiva muito particular, própria das ruas do Rio, Waldisney, protagonista de “O Porteiro” – filme que estreia no próximo dia 31 com a promessa de lotar o circuito -, traz em si o ethos dessa dinâmica de que falava Balzac. Entusiasmado pela vida esse sujeito é. Contudo, ele não é ave de rapina. Mas seu suposto ar de cordeiro manso disfarça uma sabedoria a partir da qual ele opera livremente pelo microcosmo de um apartamento capaz de sintetizar o Rio de Janeiro do século XXI. Um Rio quase tão louco quanto a França do autor de “Ilusões Perdidas”. Um Rio onde o vassalo de uma portaria num condomínio de feudos de classe média é uma espécie de repórter dos acontecimentos do dia a dia, um entrevistador das cotidianidades, um Balzac de subúrbio.
Essa figura nasceu no palco, sob o clima milenar da encenação, num canto de bodes gaiato de Alexandre Lino, ator inquieto, que optou por investigar a diáspora nordestina em seu trabalho de ator-autor, vide peças como “O Substituto” (2019). “O Porteiro”, que agora sai como longa-metragem pela Imagem Filmes, dirigido por Paulo Fontenelle, desabrochou como espetáculo teatral em 2017, no Sesc Tijuca. Dali em diante, ganhou mundo, contabilizando milhares de espectadores, numa aritmética que, a partir de quinta-feira, passa a ter o cinema entre suas parcelas. No teatro, Lino vestia as dores e as delícias de Waldisney, paraibano que chegou ao Rio sem um pau pra dar no gato a fim de ter um sustento e erigir uma família. Casou, criou suas meninas, formou-as e segue por aí, na luta, como testemunha ocular de histórias da História do Rio.
Evoca-se Balzac pelo fato de Fontenelle, conscientemente ou não, estabelecer parentela entre a saga de Waldisney e a tradição chargística das chanchadas. Lino é uma mistura de Ankito com Colé, mas com a argúcia de Zé Trindade. Toda comédia carnavalesca feitas nos anos 1950 – em especial, as de Carlos Manga – carregavam um ar de charge, pensando o “aqui e agora” do Rio, seja na falta d’água, no aumento do preço do bonde, na carestia da vida, na gentrificação do Centro e do subúrbio. Eram reportagens bem-humoradas. Tudo isso está no edifício Clímax onde a trama rodada pelo diretor de “Evandro Teixeira – Instantâneos da Realidade” (também sobre um migrante do Nordeste) trabalha.
Adereçado com inteligência na infalível direção de arte de Fernanda Teixeira, o Clímax ferve, em temperatura máxima, ânimos de moradores capazes de sintetizar o que a fauna carioca tem de mais peculiar. Há desde o casal com fetiche por bodum de suor (Juliana Martins e Heitor Martinez) até uma terapeuta holística que receita essências dignas da alquimia de Paracelso – personagem que a Salma Hayek do Brasil, Aline Campos, encarna com tarimba. O timbre cômico de Aline – que se fez notar no recente “Um Dia Cinco Estrelas” – volta a se destacar aqui. Tem ainda o craque do MMA que se assusta com pouco (José Aldo), uma doceira fã de cães (Rosane Gofman) e o Planet Hemp de uma mulher só chamada Alzira (Suely Franco), que queima tudo até a última ponta. É um povo que poderia estar num “Rico Ri à Toa” ou no bonde “O Homem do Sputnik”.
Nessa chanchada do presente, Waldisney (esculpido por Lino num tempo de humor digno de Oscarito) tenta manter o equilíbrio desse povo todo enquanto sobrevive à fúria de sua amada, Laurizete (Daniele Fontan, um dínamo de gags). Somos apresentados aos perrengues dele em retrospecto, numa narrativa de rememoração, na qual Waldisney, rapsodo de si, conta cada passo de seu dia a dia no Clímax ao Delegado. Essa figura da Lei dá ao ator Maurício Manfrini a oportunidade de se expandir para além da persona de Paulinho Gogó e mostrar o quão versátil é. Qualquer cineasta deste país que esteja pensando em fazer um thriller policial deveria levar em consideração a força em cena desse comediante para se encaixar no arquétipo do durão, de Dirty Harry, de tira mau. Manfrini no apresenta uma das melhores atuações do ano no país, sobretudo num quase monólogo sobre os epítetos do “cigarrinho do Capeta”. Ele só não leva o filme pra si porque Lino, brilhante, encaixa seu carisma nas menores brechas. Juntos, eles lembram Jack Lemmon e Walter Matthau.
Essa lembrança não é mero lampejo cinéfilo. Walter e Jack deram um gostinho de limão à crônica de costume americana, que floresceu ao mesmo tempo em que a chanchada amadurecia aqui, raciocinando sobre as pequenas desordens de todo dia. É delas de que fala Fontenelle, num filme talhado a angariar plateias. Na montagem, há planos que carecem de aparas e planos com enquadramento que merecia uma reengenharia, com reiterações de certas piadas e situações. Mas sua comicidade funciona bem, assim como o tal devir reportagem da mirada à moda Balzac, marota, de Fontenelle. Com suas potências todas, “O Porteiro” é a injeção de ânimo que nosso cinema tanto esperava para elevar as bilheterias.