RODRIGO FONSECA
Daqui a um tiquinho vai começar a projeção de “Levante”, de Lillah Halla, na competição pelos prêmios oficiais do Fest Aruanda 2023. Estamos no sábado, 2 de dezembro, e o evento entra em seu terceiro dia de exibições, sendo o segundo dedicado à maratona competitiva, que se desenrola no Manaíra Shopping, em João Pessoa, tendo no júri a atriz Soia Lira e os diretores Beto Brant e Rafael Conde. Será uma disputa acirrada dada a potência do certame, que zarpou para a excelência a partir da noite de sexta, 1/12, com os dois primeiros concorrentes de sua seleta: o tenso “Citrotoxic”, de Julia Zakia, sobre as sequelas de venenos agrícolas na vida de um Brasil poluído, e o delicioso painel de época “Saudosa Maloca”, de Pedro Serrano.
Foi São Paulo quem deu a largada para que a maratona paraibana pudesse distribuir sobre a mesa os naipes dos conflitos sociológicos que pretende abordar. A gentrificação é um deles. A poluição é outro. São sequelas da evolução de uma metrópole efervescente.
Fotógrafa do estonteante curta “Alfazema” (2019), La Zakia é uma artesã da luz de tônus dionisíaco, capaz de valorizar a pressão dos espaços que ilumina com tons de cores cálidas. A paleta de “Citrotoxic” é menos saturada, o que amplia seu teor de estranheza e inquietude. Era difícil não pensar em thrillers como “O Fio Invisível” (2021), da peruana Claudia Llosa, ou “Porquinha” (2022), da espanhola Carlota Martinez-Pereda. Mesmo o cult sobrenatural “The Babadook” (2014), da australiana Jennifer Kent, faz-se notar nas alusões que o filme desperta na gente. A realizadora de “Rio Cigano” (2015) arranca um desempenho acachapante da atriz Bianca Joy Porte no papel de uma comissária de bordo que leva a filha para uma breve temporada no campo, fora de uma SP perfumada a CO2. Lá, estranhas atitudes de um trabalhador rural, que espalha agrotóxico nas plantações, vão abalar sua paz – e a nossa. A montagem dá (muita) taquicardia.
Já Serrano completa uma espécie de tríptico com o curta “Dá Licença De Contar” (2015) e o longa documental “Adoniran – Meu Nome É João Rubinato”, de 2018, falando do mítico bardo das quebradas sub-urbanas de Essepê. A trama cria um conto divertidíssimo (apesar de seus momentos tristes) sobre a erosão de uma São Paulo romântica, do pós-Guerra, enquadrada a partir das aventuras do compositor e cantor Adoniran Barbosa (1910-1982). Figura malandra, o bardo é vivido por um Paulo Miklos em estado de graça. Igualmente encantadora é a atuação do duo formado por Gustavo Machado e Gero Camilo. Fotografados por Lito Mendes da Rocha num prisma delicado, eles encarnam Joca e Mato Grosso, pinguços batuqueiros cheios de paixão pela atendente de bar e aspirante a estilista Iracema (Leilah Moreno, sempre precisa em cena). Os dois compõem com o Adoniran do eterno Anísio de “O Invasor” (2001) três vértices de um triângulo afetuoso de resiliência popular. Uma resiliência que o “pogréssio” paulistano balança dicunforça. Vale destaque para a participação de Sidney Santiago Kwanza no elenco, como um jovem garçom cheio de apreço por um pretérito que parecia perfeito. É difícil ver a cartografia social de Serrano sem pensar no seminal “O Grande Momento” (1958), de Roberto Santos (1928-1987). A doçura neorrealista de ambos é similar. Taí… o acerto maior da obra de Serrano tem sido sua atualização dos cânones do neorrealismo. Coisa que ele faz aqui com uma leveza encantadora.
Foram duas belas escolhas para o início dos trabalhos de um Fest Aruanda que se candidata à Eternidade. Tem programação até o dia 7, sendo que na quarta rola a premiação.