Rodrigo Fonseca
Há um diálogo lá pelas tantas de “Os Príncipes” (experimento ficcional ensaístico no qual fiz uma participação como ator) em que uma besta fera esbaforida (Igor Cotrim) ironiza uma garota de programa por confundir filósofo com poeta. A ironia é bruta, mas a alusão é fina: Nietzsche é quem demarca o terreiro no qual o diretor Luiz Rosemberg Filho promove uma jira antropocêntrica para refletir sobre o totalitarismo do Estado armado. Falando como parte da equipe e espectador, posso arriscar que nunca vi um longa-metragem do realizador da obra-prima “A$$untina das Amérikas” (1976) tão refinado formalmente, tão bem acabado. A boa e velha potência de sua fúria em relação aos abusos do capitalismo segue intocada, mas há um tratamento da imagem que surpreende, e que vem dos enquadramentos inspirados de Alisson Prodlik, o fotógrafo deste Crepúsculo dos Ídolos em versão carioca. A luz, saturada no colorido de cores quentes, ressalta o tom de fossa de uma narrativa que me joga pra “A longa noite das loucuras” (1959), de Mauro Bolognini (1922-2001). São tramas gêmeas na aposta em jornadas de curta duração na qual toda a sorte de pequenos prazeres e pequenos poderes são provados à custa da dor alheia.

O dispositivo de Rosemberg lembra “Noite vazia” (1964), de Khouri: duas garotas de programa (Patrícia Niedermeier, como todo seu ferramental de dança no auge; Ana Abbott, no auge de sua habilidade de injetar ambiguidade nos sentimentos) são exploradas para o gozo (i)moral de dois proletários com empáfia burguesa. A fera Cotrim encarna um deles, evocando, em seu talento, o Malcolm McDowell de “Laranja Mecânica”; Alexandre Dacosta vive o outro bruto, com uma ironia contínua e uma desmistificação dos arquétipos das masculinidade.

Não temos informações precisas sobre esses homens, nem sobre as classes profissionais deles, mas há uma indicação (reforçada pelo fim apoteótico, sintonizado com as passeatas de 2013) de que são policiais. No começo, vê-se que trabalham para figuras de prestígio do governo, na missão de eliminar os antipáticos aos líderes vigentes. As múltiplas virtudes que têm fazem deles parte do principado de Maquiavel: são nobres agentes da Morte. Como a Indesejada das Gentes transpõe todos os limites da ética (e da estética), os dois não têm freios, canibalizando o corpo e alma das prostitutas que entorpecem com notas de R$ 50. A canibalização evolui ao limite do ódio máximo, gerando precioso desconforto no espectador no convite a um debate indigesto sobre sexismo e intolerância.

Existe, no longa, uma sequência que funciona como coringa, talvez a grande sequência deste filme inquieto: dois gigantes da atuação, Tonico Pereira e Jorge Caetano, debatem sobre o que deve ser o rumo do país em meio a trocas de reclamações, coriza e gritos de “Passa no RH”. É um embate de forças que se equilibra nas especificidades dramáticas (e comicidades) de cada um desses atores. Ali temos a medida do ethos de Rosemberg em relação às instituições e sua podridão essencial.

Que estreie logo… ou chegue à TV. Uma honra ser parte dessa viagem, que conquistou seis prêmios no Cine PE 2018: melhor atriz (Patrícia), ator (Cotrim), ator coadjuvante (Tonico), fotografia, edição de som e trilha sonora. A música de Gustavo Jobim pontua com perfeição o clima de suspense galvanizado pelos ângulos de Prodlik, sempre inusitados, sempre surpreendentes.