RODRIGO FONSECA
Tem “O Grande Circo Místico” na TV hoje: às 20h, o mais recente longa-metragem de Cacá Diegues, que dividiu opiniões em sua estreia em circuito, será exibido pela Rede Telecine, no canal Cult. Esta superprodução está indicada ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, a ser entregue no dia 14 de agosto, em dez categorias, como a de melhor filme, roteiro e fotografia.
Atração brasileira mais imponente do Festival de Cannes de 2018, com direito à projeção de gala, O Grande Circo Místico é a apoteose da relação amorosa de um dos mais distintos cineastas da América Latina com a poesia, algo curioso para um realizador comprometido, domingo a domingo, à produção de artigos para jornais.
Ao longo de cinco décadas de carreira, Carlos Diegues, o Cacá, já escreveu muita coisa, além de argumentos. Fez a autobiografia da sua geração, escreveu ensaios sobre a reestruturação económica do nosso audiovisual, rascunhou reflexões com cara de poema… Enfim…, muito texto! Texto demais para um bicho da imagem. Mas um bicho da imagem egresso de um processo de formação intelectual no qual se lia demais, indo de Gilberto Freyre a Jorge Amado, de Graciliano Ramos a Sérgio Buarque. Não era de se espantar que as palavras brotassem dele. Por praxe da fricção artística, esperar-se-ia que as palavras brotassem daí como romance ou conto, mas foi por meio de poemas de Jorge de Lima (1893-1953), um autor nascido nas Alagoas, como Cacá, que o septuagenário cineasta produziu (e realizou) o seu melhor filme em muitos anos.
Foram necessários 12 anos para que Cacá regressasse às veredas da ficção, após ser laureado no Festival de Montreal com O Maior Amor Do Mundo (2006), o momento mais truffautiano de uma filmografia iniciada no formato longa-metragem em 1964, com Ganga Zumba. Mas O Grande Circo Místico – um livre diálogo com os poemas de Jorge de Lima, no livro A Túnica Inconsútil, de 1938 – enfim chegou, como prova de que a espera foi compensada pela excelência.
Desde Bye bye, Brasil (1979), a sua obra-prima, Cacá não surgia até nós tão visceral, lúdico e sem medo de ser erótico, num momento em que voltamos à Idade Média no que envolve à discussão do desejo e da carnalidade. Existe em cena um toque de fantasia traduzido em efeitos especiais, em personagens inusitadas e na fotografia quase expressionista de Gustavo Hadba, cuja luz acentua o assombro sob um picadeiro de excessos. A parceria com o guionista George Moura (de joias televisivas como Onde Nascem Os Fortes), dono de uma particularíssima estética antropológica interessada na selvageria inata aos processos civilizatórios, deu ao cineasta a possibilidade de estudar as transformações afetivas do Brasil ao longo dos cem anos que seu filme condensa.
O enredo – transformado em ballet por Naum Alves de Souza, em 1983; e em peça musical, por João Fonseca, 2014 – mapeia um século na vida de uma trupe circense amaldiçoada por paixões tempestuosas, pela pressa da Morte em abreviar vidas felizes e pelo machismo. O francês Vincent Cassel empresta o seu charme ao filme na pele de um mágico Don Juan que sintetiza a sua empáfia todas as chagas humanas daquela lona de múltiplos misticismos. Cabem ainda nessa lona todos os traços autorais de Cacá (a etnografia da sobrevivência, a magia da fé, as mulheres empoderadas).
Num momento de apogeu como cronista, eleito para a Academia Brasileira de Letras, o realizador arranca atuações viscerais de seu elenco, sobretudo da sempre surpreendente Luiza Mariani – como uma bagaceira refém da fossa – e de Mariana Ximenes, na pele de uma rancorosa trapezista tatuada. Elas são estrofes iluminadas neste poesia em forma de filme.