Não faltam motivos para entrevistar o sempre reflexivo e bom de papo, Philippe Seabra. A Plebe Rude, banda que criou em Brasília com o baixista André X, faz 40 anos – com shows comemorativos e um futuro acústico à vista.
Há mais ainda: Philippe lançou O Cara da Plebe, uma autobiografia de 630 páginas na qual não fala apenas dele e da história da sua banda, mas traz uma boa visão e revelações sobre o rock, como cultura pop, de uma maneira geral. É um bom livro, vale a pena ler.
Neste cenário, a entrevista para o Laboratório Pop rendeu tanto que a dividimos em duas partes. Da influência do punk no mundo a uma visão realmente crítica sobre o rock nacional.
(parte 1)
Do início com Clash e Television, como a inspiração punk entrou na sua vida?
Pouco antes de ser introduzido ao mundo do punk, o rock setentista era minha fonte, mas era um clube exclusivo. A entrada era permitida somente para astros com longos cabelos ou para músicos progressivos saídos do conservatório, também com longos cabelos. Com poucas exceções como Suzi Quatro e The Runaways, mulheres não eram permitidas, a não ser nos camarins depois das apresentações ou nos quartos de hotel. As letras descreviam isso em detalhe e só serviam para aumentar o libido dos pré-adolescentes.
Quem não sabia tocar sequer era convidado. Mas e o punk? O punk lhe desafiava a fazer parte do movimento e não ser apenas um mero espectador. Não sabe tocar? Não tem problema. Não sabe cantar? Não tem problema. Ter uma banda punk era colocar em prática a lição que aprendi com meu pai de não deixar suas limitações te definirem como pessoa.
Eu tinha 13 anos quando o André X, futuro companheiro/irmão na Plebe, me apresentou ao punk. Como é que eu não sabia desse universo? Em parte por causa da coleção do meu irmão mais velho, onde não existia essa vertente. Foi naquele momento que comecei a entender as origens, os primórdios. The Who, T-Rex, David Bowie, The Stooges, Iggy Pop, MC5… Não era apenas música, era um manual para vida. Letras densas e políticas como as do The Jam e The Clash, letras de romance abstrato como Psychedelic Furs e Cure e letras de dystopia como Killing Joke e PIL.
De certa forma, o punk influenciou todo mundo…
Tinha cunho social, postura e mensagens. Pareciam que foram todas escritas para mim. Estava conhecendo todas essas bandas – mas eles já me conheciam. O pós-punk se consolidaria como a vertente do rock mais importante da história.
Sobreviveria ao disco, brega, rock setentista, o heavy metal, o hair metal, a música eletrônica e se tornaria a principal fonte de
inspiração para quase todos os artistas de impacto nos últimos trinta anos, de Nirvana a Arcade Fire, de Foster the People a Massive Attack, de Nine Inch Nails a Guns and Roses, de U2 a Muse, de Coldplay a Radiohead.
Cineastas como Jim Jarmusch, Tim Burton, Stephen Frears, Sofia Coppola, Ridley Scott, e Martin Scorcese se inspirariam na estética. Estilistas de Vivian Westwood (a matriarca), Alexander McQueen a Jean Paul Gaultier carimbariam-a nas passarelas e vitrines.
Autores como Nick Hornby, William Gibson, Douglas Coupland e até o nosso Marcelo Rubens Paiva com seu pós-apocalíptico Blecaute, escreveriam na pegada. You name it, o punk esta ali de alguma maneira.
Qual é a sua onda agora?
Hoje em dia fico feliz ver o pós-punk ainda relevante. E, pensando bem, praticamente toda banda de porte de rock internacional se inspirou no pós-punk, de Foo Fighters a U2, de Muse a Arcade Fire. E olha aí o disco novo do The Cure…
O André é o mais antenado nas “novas” tendências. Eu sou mais da velha guarda e já estou com meu ingresso para ver The Damned, em São Paulo, em março.
O que vem de novo com a Plebe?
Depois da monumental saga do musical álbum duplo Evolução Volumes 1 & 2 (com 27 músicas inéditas – e a repaginada “Nova Era Tecno”), o próximo passo é um disco acústico a ser gravado em breve, comemorando os 40 anos da gravação do Concreto Já Rachou, também com representantes de cada disco da Plebe desde então. O pós-punk sempre apontando o caminho.
Que avaliação você faz da trajetória da Plebe?
Vivíamos na Capital Federal e a sombra militar era mais presente do que no resto do Brasil. Não é que fugíamos de tanques de guerra ou éramos caçados em campos repletos de crânios como no Exterminador do Futuro, mas o clima estava no ar. E trazia de volta a dissidência impressa em mim pelas passeatas anti-Guerra do Vietnam e anti-Nixon quando era criança.
E agora com 14 anos, toda contestação dentro de mim que estava latente estava sendo convidada a sair e se manifestar na superfície através do punk. Eu sempre falava para o Renato que se não fosse Brasília, nada disso teria acontecido, ao menos dessa maneira.
Se alguém tem uma inclinação artística, vai se manifestar de um jeito ou outro eventualmente, mas por ter sido em Brasilia, naquele momento no espaço/tempo, saiu como saiu. E ressoou como ressoou.
Algumas bandas que surgiram na mesma leva se popularizaram. O que manteve a Plebe circunscrita à sua legião de fãs?
Já de cara eu via a dificuldade algo acontecer com a Plebe. Eu sabia que a Plebe era a menos comercial, de longe, das bandas de Brasília e mesmo com toda a cena nacional surgindo e vendo as bandas colegas de São Paulo ganhando tração na mídia, não conseguia enxergar em que contexto seríamos inseridos, se é que seríamos…
Flashes passavam na minha cabeça do clip de “Vital e sua moto” com o Herbert cantando de cartola à lá Charlie Chaplin. Ouvia um eco caribenho do teclado horroroso de “O Reggae” do primeiro disco da Legião (sem mencionar o timbre de guitarra) e as guitarras melosas embaixo dos versos igualmente melosas, “A Europa está um tédio vamos transar com estilo” do primeiro compacto do Capital. Clipe de cartola? Tecladinho? “Transar com estilo”? Estamos ferrados.
Enquanto que “Tempos Modernos”, do Lulu Santos, tocava no rádio me sentia ainda mais desesperançoso, e não somente pela pegada pop. É que as bandas de Brasilia, ou conhecidos por terem 2/3 dos membros que moraram em Brasília – no caso dos Paralamas, estavam todos dizendo, da maneira mais fina, elegante e sincera, “mais sim do que não”. Como é que a Plebe chegaria a um disco se fosse de longe a banda mais “não” de Brasília? Talvez até do Brasil? Será que o sonho punk acabaria do mesmo jeito que o sonho hippie em “Easy Rider”? E não foi nada bonito.
Onde a Plebe entra nesse cenário?
A trajetória da Plebe certamente foi outra. Todas as bandas do incipiente rock brasileiro mainstream tinham o contraponto do pop fácil nos respectivos repertórios, ou em alguns casos, sem vergonha mesmo, com músicas que lhe sustentaram a carreira completamente opostos a uma ou outra mais contestatória que chegaria as rádios.
Para um olhar desatento, a primeira vista parecia que dedicaram sua carreira inteira a músicas mais sérias quando na maioria dos casos, o grosso do repertório era recheado de letras – com exceções é claro – bobas ou no mínimo não muito inspiradas. Na sua definição mais pura, pop safado mesmo.
Chego a conclusão que o contraponto da Plebe na música popular brasileira era justamente o de não ter contraponto no próprio catálogo. E por não ter esse denominador em comum mais baixo, que garantisse uma certa sequência de ‘sucessos tangíveis’ a cada disco, pagamos um preço alto.
Engraçado, até The Clash tinha esse contraponto no repertório como “Train in Vain” (uma faixa escondida dentro de London Calling) e “1-2 Crush on you”, mas pensando bem, foram cantadas pelo Mick Jones. Tudo depende de quão à vontade um está para cantar letras assim. Joe Strummer não ficava e eu, devidas as proporções, obviamente não também.
A Plebe estava inserida numa cena e com contrato com uma gravadora grande, a EMI-Odeon, como era isso?
É triste que os executivos não viam a coerência da banda como um trunfo. Mas, ao menos, nunca tive que me preocupar de ter me vendido porque, parafraseando o Tony Wilson, co-fundador da Factory Records, “Eu tenho me protegido de um dia ter que me vender por não ter nada para vender”. O que me movia na época é a mesma coisa que me move hoje em dia: urgência. E com um “U” maiúsculo, isso mesmo, bem grande pra você.
Muita gente ainda acredita no bem que pode ser feito honrando suas escolhas de vida e lutam para o bem maior, com as armas que tem. Professores que recusam a se entregar ao sistema falido, médicos na rede pública que tentam salvar vidas apesar da falta de recursos. Bombeiros e policiais que arriscam as vidas todos os dias. Cuidadores de idosos e de crianças especiais.
Essas pessoas não são movidas pela glória ou fama. Fazem o que acham que é certo, independente do prognóstico muitas vezes fadado. Agora feche os olhos e imagine um mundo sem essas pessoas.
Conta um pouco dos bastidores e do conceito do seu livro, O Cara da Plebe.
Em 2018, eu comecei a virar palestrante ocasional e quando fazia a palestra numa faculdade ou num auditório para estudantes, tinha um momento que sempre arrancava aplausos dos professores.
Era quando falava das inúmeras idas aos museus públicos – que Washington oferecia fartamente – quando eu era criança. Mas essas visitas eram uma experiência de família, não de escola. O ideal é que a apreciação a literatura, história e arte venha do berço, e reforçado pela escola.
As letras conscientes e lúcidas do rock de Brasília não se escreviam sozinhas nem vinham de um vácuo. Foi aí que ví que eu teria algo a dizer num livro. Eu, André e o Renato tivemos esse privilégio.
Mas no caso genialmente ímpar do Renato, me lembro da música da Sheryl Crow “Everyday is a Winding Road”: “Ele estava chapado em intelectualismo. Eu nunca estive lá mas o folheto parecia bom”. Eu certamente não desci o caminho dos “filósofos suicidas” que o Renato seguiu, e muito menos passei pelas “portas da percepção” do Aldous Huxley… Mas que essas palestras abriam outras portas, abriam. E das palestras que comecei a dar, saiu o livro O Cara da Plebe.
Quanto tempo você demorou para escrevê-lo? Afinal, são mais de 600 páginas…
Para focar no livro, eu tive que me sacrificar um pouco. Terminei o disco da banda Adjani, um rock/mpb moderno digna de ao menos a uma indicação a um Grammy Latino e depois do término da mixagem deles em Nova York, trancaria o estúdio para me dedicar ao livro.
Comecei a escrever, projetando que chegaria à umas 500 páginas, sempre alternando entre as minhas palestras esporádicas, a excursão Nação Daltônica e claro, ser pai e marido full time. Aí pensei: “Foco Seabra, que em um ano você termina”. Mas depois da escrever por alguns meses, ao passar pelos primórdios da banda na narrativa quando fui tirar algumas dúvidas com o André sobre as músicas do comecinho da banda, começamos a pensar no inevitável: “Porque nunca gravamos esse material?”. Aí parei por quase um ano para me dedicar ao DVD “Prímórdios 1981 – 1983” e a consequente turnê.
Sim, fica difícil escrever durante a dinâmica de uma turnê…
Depois de um ano retomei o livro e alguns meses depois durante minha pesquisa extensa para ele me deparei com a letra original de “Evolução” um curiosa música minha e do André de 1989 – mas que foi arquivado pois era um tanto quanto “irreverente”, termo que sempre odiei.
Mas disso sairia o musical – opera punk – enorme de álbum duplo Evolução Volume 1 & 2 e parei mais uma ano e meio a escrita do livro para a produção, gravação e turnê. Durante a pandemia nem toquei no livro e quando retomei, depois de 2 anos, ja estávamos em 2023. Mais um ano de edição final, negociações com a editoria Belas Letras, pesquisa de foto, etc… e aí está.
Eu sempre trabalhei com projetos grandes, gravação e produção de álbuns inteiros, trilhas sonoras de cinema, direção musical, mas um livro? Ainda mais de 630 páginas? (isso porque a versão final antes da edição ficou com 900 páginas!) Exaustivo…
O que você, agora mais velho e mais experiente, faria diferente se pudesse voltar no tempo?
Eu teria dito mais o que estava sentindo. Ao ler o livro, as pessoas entenderão…