Fãs de Lady Gaga disseminaram uma campanha de ódio na web contra “Venom”, que estreou por aqui na quinta-feira, para evitar que o novo tentáculo pop da Marvel ofuscasse, nos EUA, a estreia do rasga-coração “A star is born” (“Nasce uma estrela”), no qual a diva comprova o quão boa pode ser na tarefa de atuar. Total respeito por Lady Gaga. E total respeito pelo drama cheio de acordes musicais em que ela brilha, sob a direção (impecável) do galã Bradley Cooper, em sua primeira incursão ao posto de cineasta. Mas esse esboço de boicote ao longa-metragem derivado das HQs do Homem-Aranha soa deslocado e rude. Há muito o que se falar do bom trabalho de Bradley. Mas só na semana que vem, quando esta produção estreia aqui. Agora, é a hora e a vez de “Venom”, que é MUITO melhor do que andam a (mal)dizer por aí.
Para entender a grandeza desta pipoca bem temperada, Num esforço de ampliar seu círculo de leitores, somado ao desejo de associar sua marca a uma indústria de brinquedos como a Mattel, especialista em action figures, a Marvel, na primeira metade da década de 1980, aprovou um projeto que integrasse seus mais populares heróis e vilões em uma saga espacial, que os repaginasse. Jim Shooter era o autor responsável por essa missão, amparado nos desenhistas Mike Zeck e Bob Layton. Em 1984, ela se materializou nas gibiterias e quiosques sob o título de “Guerra Secretas”, um minissérie em 12 edições: nela, uma entidade onipotente, Beyonder, congregava vigilantes e supercriminosas para um duelo em um universo paralelo. É lá, nesse outro plano de realidade que o mais popular herói da Casa das Ideias (apelido da Marvel entre os leitores), o Homem-Aranha encontrava um ser alienígena que se integrava a seu corpo e se transformava em um uniforme superpoderoso. Naquele momento, a tal “superroupa” era descrita apenas como “O Simbionte”. Agora, ela tem nome: Venom. E tem um filme excelente para chamar de seu.
Fruto de todas as inquietações contraculturais da década de 1960, Peter Parker, aka Homem-Aranha é, até hoje, um signo da busca de aceitação afetiva, um exemplo de um tempo onde ser diferente era subjetivar exceção: quanto menos adequado à normas, mais revolucionário. Nas HQs Marvel, revolução significa contestar o bom mocismo pregresso, as normas de boa conduta dos anos 1930 e 40 (a era de ouro dos quadrinhos, com heróis de bom tom, engomados), e trazer uma radicalidade juvenil. Ser jovem é ter espinhas, crises hormonais, desencontros emotivos, sonhar em mudar o mudo a socos. Isso tudo é o Aranha como arquétipo, que encontrou, nos últimos anos, ressonância na delicada atuação do ator inglês Tom Holland, que encarnou o herói no cinema em 2017, em “De volta ao lar”, e neste 2018, em “Guerra Infinita”, brigando com Thanos. É uma releitura vívida de uma marca que se cristalizou nas telas a partir de 2002, a partir da incursão do diretor Sam Raimi no universo deste justiceiro lançador de teias. Um justiceiro que se repaginou nos quadrinhos, a partir das tais “Guerras Secretas”, de 1984 a 85, na fusão com Venom. O uniforme revelou ser um ente do Mal, um perigo, e os dois se afastaram. Em 1988, o personagem voltou, com autonomia, como um vilão. Só que, agora, nestes tempos de carência de valores morais, a bandidagem do Venom é convertida em virtude, em sua encarnação cinematográfica.
Marvetes (alcunha dada aos fanáticos pelo universo de Stan Lee) têm motivos diversos para ir ao delírio com o divertidíssimo “Venom”, começando pela evocação ao traço incomparável de Todd McFarlane, desenhista que celebrizou o personagem, e seu alter ego, Eddie Brock, nas HQs, em 1988. McFarlane mudou a maneira de se desenhar herói, apostando em uma arte mais carregada de detalhes, hipercolorida, e, de quebra, ainda inventou o Soldado do Inferno, Spawn, cujo traje diabólico lembra a máscara do Aranha.
Não há Aranha em “Venom”, pelo menos não até uma deliciosa coda que vem nos minutos finais. Mas há a consolidação de um protagonista avesso a normas moralizantes das BDs. A anatomia gordurosa, cheia de excessos, de McFarlane está espelhada no que o filme dirigido pelo sempre ousado Ruben Fleischer (“Zumbilândia”) tem de mais potente esteticamente: a fotografia de Matthew Libatique. Ela é saturada até o ponto certo, sem repetir fórmulas pasteurizadas dos filmes de super-herói. Até porque, este thriller de fantasia – que começa trágico, como um episódio da série do “Hulk”, com Bill Bixby, e descamba pruma chanchada na linha “Deadpool” – está mais para um “filme de monstro” com Lon Chaney Jr. (astro de “O Lobisomem”, de 1941) do que para o vigilantismo de “Os Vingadores”. Apesar da má escalação do vilão (Riz Ahmed soa coxinha demais como o aspirante a Lex Luthor Carlton Drake), Fleischer conta com a atuação em estado de graça de Tom Hardy. Ele humaniza Brock em múltiplas latitudes.
Tudo aqui começa como um enredo de aceitação (Brock se funde com um simbionte), protagonizado por um egocêntrico de carteirinha. Mas a narrativa sofre uma guinada, sem movimentos bruscos, para a “heroicização”, sem sacrificar a sordidez essencial de Brock. A montagem acomoda bem as cenas de ação, amplificadas pela trilha de Ludwig Göransson. As cenas pós-créditos valem a espera – uma com Woody Harrelson, outra com uma animação no “Aranhaverso”. Esta é uma deixa para uma das estreias mais aguardadas da temporada de estreias de Natal, com fôlego para dar um Oscar à Marvel.