Rodrigo Fonseca
Tá um primor o pacotão de ofertas do Telecine online, que pode ser adquirido como plus pelos assinantes da Amazon Prime por uma bagatela, e oferece em seu acervo desde o ganhador do Leopardo de Ouro de 2022 (“Regra 34”, de Julia Murat) ao horror cool “Pearl”, com Mia Goth. É atração que não falta mais, incluindo a chance de novíssimas gerações conferirem o melhor de Sofia Coppola, com “Encontros e Desencontros”, que celebra seus 20 anos agora. Mas há um título que SEMPRE merece mimo: “Druk – Mais Uma Rodada”. É Thomas Vinterberg no apogeu. Em 2020, no momento em que a pandemia assombrava o mundo e nos trancafiava em sucessivos lockdowns, o exercício autoral mais tocante (e etílico) da obra do realizador dinamarquês, responsável por joias como “Submarino” (2010), quase foi solapado pela covid, mas deu um jeito de se reinventar.
Chegou a ser selecionado para Cannes, mas o festival dos festivais não teve como ser realizado. O jeito foi pular para os grandes eventos de setembro – TIFF: Toronto Film Festival, no Canadá, e San Sebastián, na Espanha. De lá, de terras ibéricas, ele só fez bombar.
Chancelado para a posteridade por 50 prêmios relevantes, entre eles o Oscar de Melhor Filme Internacional, esta dramédia hilária (mas aberta a ressacas) foi coroada com uma bilheteria de US$ 12 milhões. Sua feitura é o triunfo da resiliência de um realizador no apogeu de seu ímpeto criativo. Vinterberg seguiu com suas filmagens sem se deixou dobrar pela mais dura e irreparável das tragédias pessoais: a perda de uma filha. Em 2019, no quarto dia de rodagem de “Druk – Mais Uma Rodada”, num set repleto dos amigos com quem vem trabalhando desde os tempos do Dogma 95 e do cult “Festa de Família” (1998), o cineasta recebeu de uma ligação sua ex-mulher, Maria. A chamada lhe tirou o sorriso e o chão sob os pés. Naquele dia, a filha deles, Ida, de 19 anos, havia morrido, vítima de um acidente de trânsito. Imerso em um projeto que define como “um ensaio sobre a perseverança em meio aos excessos”, o realizador pensou em parar tudo, imerso no luto. Estava destroçado pela lembrança da garota pela recordação de que um dos papéis principais foi escrito para a jovem. Seria a estreia de Ida nas telas, em uma personagem de peso. Parte do longa-metragem seria rodado na escola da moça, com colegas da menina como figurantes. Parceiro do diretor no arrebatador “A Caça” (2012), o ator Mads Mikkelsen esteve ao lado do cineasta todo tempo e foi a primeira pessoa a ouvi-lo dizer: “Não faz sentido a gente não continuar”. Foi ainda um dos primeiros a apoiá-lo na aventura de rodar aquela narrativa sobre parcerias.
Num encontro com a imprensa, durante o 68º Festival de San Sebastián, há três anos, Vinterberg explicou que Ida amava aquela história, batizada mundialmente de “Another Round”. Trata-se de um argumento sobre volta por cima. Mais do que isso, é um filme que afronta o moralismo de modo prospectivo e corajoso, celebrando o companheirismo. O alicerce para as reflexões libertárias de Vinterberg é a luta de um professor de História, Martin, para reinventar sua surrada rotina. Esculhambado por estudantes e ignorado por sua mulher e seus filhos, ele vai se une a uns amigos num experimento regado a álcool como forma de superar sua frustração. A ideia é mandar goela adentro, dia a dia, um percentual bem generoso de Caninha da Roça. E de vodca. E de vinho. E de cerveja. E de tudo que faça um trocar de pernas.
Ovacionada em San Sebastián, a produção saiu de lá com um prêmio coletivo para seus atores: Mikkelsen (que vive Martin), Thomas Bo Larsen, Magnus Millang e Lars Ranthe. Lá consagrou-se a antológica sequência em que Mikkelsen dança ao som da canção “What a Life”, gravada por Scarlet Pleasure, num brinde à vida. É uma música que gruda nos tímpanos. Que bom que o Telecine tá a mil no streaming, como segue estando no cabo.