Tudo Acabou Ontem, de Mario Marques, é um hino íntimo à memória e uma obra sensível sobre os ecos da juventude, da música e das emoções que nos moldam. Ambientado nos anos 1980, o livro é uma carta de amor à música daquela época e um tributo à pureza e à dor da adolescência, atravessado por uma profunda reverência a tudo aquilo que foi, que poderia ter sido e que jamais voltará a ser.
Tudo Acabou Ontem mergulha o leitor numa atmosfera embebida por referências musicais que definiram a alma dos anos 1980, especialmente o U2 de Bono e The Edge. Não são meras citações decorativas: os discos Boy, October e War são importantes personagens da trama, conectando temática e simbolicamente os três capítulos do livro. Não são apenas trilhas sonoras da juventude, mas verdadeiros ritos de passagem emocionais. O U2 de 1983, ainda no início da carreira, simboliza a banda de rock pura: apenas guitarra, baixo, bateria e mensagem, vindos da distante Irlanda, ainda intocados pelos excessos do sucesso comercial global.
Vale lembrar que Marques, além de crítico musical por profissão, é também um apaixonado colecionador de bandas, shows, discos e faixas: a música é sua língua materna. Isso transparece não só nos protagonistas de seu livro mas também na riqueza sensorial e simbólica de sua prosa, que impressiona mais pela carga emocional do que pela proeza literária — sobretudo quando descreve canções, memórias, momentos, e as muitas camadas de sensação que eles despertam.
No primeiro capítulo, Eu conheci uma party girl, o protagonista Geddy é um jovem romântico, alguém que ainda acredita na autenticidade e na profundidade das emoções. O cenário aparentemente ordinário de Kansas City ganha contornos míticos quando atravessado por seu olhar: cada rua, cada loja de discos, cada encontro é vivido com intensidade lírica. Acima de tudo, a música — seu refúgio — lhe é uma experiência quase religiosa: não só no êxtase enquanto os discos tocam, mas também em cada sacrifício exigido durante a busca por esses itens sagrados.
A personagem B., intensa e frágil, sintetiza o fim da inocência e o início da perda para Geddy. Ela é a party girl do capítulo: um misto de beleza impulsiva, abandono e dependência. Geddy não a idealiza. Ela é vista em toda a sua contradição: sedutora e perdida, confiante e destruída. Mas, por um breve momento, ela é uma janela para algo verdadeiramente novo e genuíno, ainda que frágil demais para se manter. A tragédia que a envolve em Red Rocks não é apenas uma catástrofe pessoal, mas o marco simbólico do fim de uma era.
Não à toa, o plot twist coincide com o instante histórico em que o U2 explode comercialmente nos Estados Unidos, perdendo de alguma forma a pureza de suas origens. Esse momento de transição da banda espelha o que acontece com Geddy: uma saída forçada da pureza sensível da adolescência para uma realidade onde a beleza precisa negociar espaço com o ruído e o eco. Mesmo a música, que antes era abrigo e identidade, começa a carregar também o peso da memória e da ausência.
O segundo capítulo é um mergulho na alma de Paddy, um lixeiro nova-iorquino que vive imerso na sujeira literal e simbólica da cidade. Desde o início, a metáfora é poderosa: ele trabalha com aquilo que os outros descartam, inclusive sentimentos. A descoberta das cartas rasgadas entre Cora e Douglas nos lixos de Stuy Town é um ponto de virada para Paddy. Através do lixo, ele se apaixona por Cora.
Desde seu título, O amor é limpo, o capítulo é cheio de simbolismo. No meio da imundície urbana, o amor emerge como um gesto purificador. Para Paddy, amar Cora, mesmo à distância, é também uma forma de se limpar por dentro, de escapar da sujeira — real e metafórica — que o rodeia. O amor, aqui, é criação e redenção, ainda que por uma via trágica. Em sua malfadada saga para transformar o amor platônico em possibilidade, Paddy acaba construindo para si uma vida mais digna. Não por ser correspondido, mas por ter sentido algo verdadeiro.
Ao final do segundo capítulo, o disco Live at Red Rocks, do U2, ressurge de forma sutil, mas carregada de significado. É um detalhe interessante. Assim como Red Rocks marca a perda da inocência para Geddy no primeiro capítulo, aqui também simboliza a virada de algo que antes era refúgio e agora carrega o peso da exposição e da perda. Paddy, como Geddy, sente que algo essencial se rompe quando o que era só seu, íntimo, atemporal, passa a pertencer também ao mundo e à memória.
O terceiro e último capítulo desloca a narrativa para Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense dos anos 1980. Marques se ancora na figura de Franco — uma espécie de alter ego — para concluir sua reflexão sobre a juventude, o amor e a impossibilidade da permanência. Franco é outro protagonista adolescente, sensível, introspectivo, apaixonado por discos e ainda ingênuo o suficiente para ser um sonhador. Quando não está viajando em solos de guitarra com os amigos, passa horas sentado em um banco de pedra observando a vida do bairro. Quer entender o que lhe falta, pois sabe — ou melhor, sente — que falta algo. Mas o que realmente lhe desperta fascínio é a casa ao lado: a de Douglas e Evie.
Douglas é o obscuro comissário de bordo que atravessa os três capítulos do livro. Sua presença recorrente e fragmentada é fundamental para entendermos o que Marques tem a dizer sobre a passagem do tempo, o desencanto da vida adulta e a perda da pureza juvenil. Por um lado, Douglas traz discos, tecnologias e novidades de lugares distantes, cruzando fronteiras livremente pelos ares. Para os adolescentes do livro, ele é o estranho embaixador de um mundo maior, um esporádico mensageiro do futuro. Por outro lado, Douglas é o esgotamento desse mesmo sonho: sempre em trânsito pelos céus, ele transita também emocionalmente. Vive entre malas prontas, caixas de contrabando e bares baratos. Um homem que parece ter tudo, mas não tem realmente onde pousar. É o símbolo máximo da ausência, da traição, do desencanto — um mundo absolutamente estranho ao sensível e intenso Franco.
Evie, a esposa de Douglas, talvez seja a personagem mais trágica e simbólica de Tudo Acabou Ontem. Bela, triste e solitária, ela habita um tempo que parece suspenso. Vive à espera: espera Douglas, espera um afeto, espera um futuro. Espera que alguém veja nela mais do que uma mulher bonita e solitária à beira da piscina. Quando convida Franco para ouvir U2, para dançar, para dividir a música e o momento, é mais do que um gesto de sedução: é uma última tentativa de sentir algo verdadeiro. A interrupção repentina daquele instante, antes mesmo de acontecer — como uma canção pausada bem na primeira nota do refrão —, enfatiza a impermanência de tudo que havia ali: juventude, música, desejo, paixão, possibilidade.
O título do capítulo, O último voo, carrega múltiplos sentidos. É o voo literal de Douglas, que está sempre partindo. É o voo emocional de Evie, que tenta permanecer suspensa no ar com um último movimento delicado de aproximação. Mas também é o voo de Franco: o voo interno de quem começa a entender o mundo adulto, suas promessas quebradas, seus silêncios irreversíveis, suas súbitas explosões de sentimento e dor. Ao final do capítulo e do livro, a única coisa que se move é um avião cortando o céu: vestígio de um tempo que não espera, que insiste em seguir adiante, mesmo quando tudo lá embaixo parece ter parado.
Assim como os movimentos post-punk e gótico dos anos 1980, Mario Marques se revela um herdeiro direto do romantismo literário do século XIX. Seus protagonistas vivem à flor da pele, deslocados do mundo em que vivem, guiados por uma sensibilidade intensa, um desejo de transcendência e uma dor que não busca cura, mas expressão. O amor é idealizado, o sofrimento é nobre, a melancolia é estética. E, sobretudo, a música é a mais profunda expressão da alma.
A metáfora da impermanência, que percorre todo o livro, nos recorda que as experiências mais vivas são, muitas vezes, aquelas que resistiram guardadas na memória, protegidas do desgaste do tempo, intocadas pela realidade, eternamente puras e verdadeiras. Ou até mesmo as que nunca chegaram a se concretizar: expectativas juvenis que permanecem como possibilidades latentes, para sempre preservadas nos museus mnemônicos do quase, do se, do talvez.
É nesse intervalo entre o vivido e o não vivido, entre o pretérito mais-que-perfeito e o futuro do pretérito, que Tudo Acabou Ontem encontra sua voz mais íntima — e, com isso, toca em algo comum a todos nós. O primeiro romance de Mario Marques é, enfim, uma realização profundamente pessoal e, ao mesmo tempo, um tributo universal àquilo que não volta — mas também ao que, de algum modo, nunca se foi.