RODRIGO FONSECA
Neste fim de sábado, à 0h50, a TV Globo abre espaço nobre para “João, o Maestro” (2017), um doído exercício de elegância a partir do qual Luiz Carlos Barreto, o mais folclórico (e autoral) produtor de nosso cinema, faz jus ao seu histórico legado, que vem de Vidas Secas (1963) para cá. Há nele duas frases de tônus melodramático: “Assim como o vaso deve moldar o vazio, a música deve moldar o silêncio”; “Quem fraterniza com a dor comunga do grêmio de Deus”. Por se tratar de um protagonista virtuoso que tem uma fratura física a ser superada, a versão para as telas da vida musical de João Carlos Martins (um ás do piano que vira regente ao ser proibido de dedilhar teclados por limitações ósseas decorrentes de traumas físicos) tinha tudo para seguir a toada do melodrama, e daquele padrão Franco Zeffirelli. Mas de O Campeão (1979) ou sacaroses similares o novo (e mais vigoroso) longa-metragem de Mauro Lima (de Reis e Ratos) não tem nada, sendo capaz de subverter a armadilha dos enredos de superação ou de obsessão. Coube ao longa abrir o Festival de Gramado em 2017, abrindo espaço para a vitória antológica de “Como nossos pais”, da cineasta Laís Bodanzky.

Nietzschiano até a alma, com uma potência visual garantida no esmero dos enquadramentos plastificados pela fotografia de Paulo Vainer, este drama de sutis linhas trágicas é uma narrativa sobre vontade de potência, sobre o verbo “viver” na sua desinência mais apaixonada. Alexandre Nero e Rodrigo Pandolfo dividem o papel do título marcando pênaltis em prol do escrete da paixão, numa tática de artilharia a gol que põe (enfim) os dois no planalto das atuações inesquecíveis de nossa indústria cinematográfica.

Numa parentela genealógica com representações de músicas na tela, esta produção tem em seu DNA traços de A Fera do Rock (1989), de Jim McBride. Ambos não falam de música. Falam das rebeldias que ela embala no intervalo da precisão e da disciplina.


Quase dez anos depois de sua consagração popular com Meu Nome Não é Johnny (2008), Lima retoma as partituras do biopic imprimindo uma veia autoral em sua forma de elaborar elipses (nas passagens de tempo) e de ir e voltar na cronologia, para, a cada volta, revelar algo de emotivo de seu quase herói. A revelação é sempre da ordem dos afetos, como se dava em seu (subestimado) Tim Maia(2014). Mas o que mais impressiona na execução dessa autoralidade é o requinte plástico de cada plano, que dispensa as metonímias inerentes aos filmes sobre músicos. A metonímia de praxe (a parte pelo todo) é a recorrência de cenas de mãos a dedilhar pianos. Mas não temos aqui um Shine – Brilhante (1996): não importa a patologia, nem a virtude em si, o que mais conta é querência, o desejo, a aposta no querer.

Conduzido sob os atabaques do pop, na jira da leveza, João, o Maestro (saborosíssimo até para quem não costuma se conectar com a música erudita) põe Pandolfo e Nero a rolar a bola da angústia, na exasperação de um gênio da arte diante da necessidade física da fruição (em excesso) dos prazeres. Parte dele é solfejado em dó ré mi fá sol lá si. Fernanda Nobre (ótima) e (uma madura) Alinne Moraes ficam com os dois papéis femininos (de amor) de mais peso no filme que encontra um alívio cômico numa sequência em um bordel no Uruguai.


Viaja-se muito na trama (Argentina, Washinton, Berlim, Bulgária) e, em cada ponto, vem um coadjuvante de peso, como o clownesco Kevin Sebastian, que vive o agente americano de João. Mas o brilho maior, nas atuações (essenciais) de apoio, divide-se entre o professor de piano encarnado paternalmente por Caco Ciocler e o pai lusitano do maestro, vivido dionisiacamente por Giulio Lopes (um dos maiores atores de São Paulo), sobretudo nas passagens de infância e juventude do longa.