Rodrigo Fonseca
Wolverine regenerou nossa percepção de um heroísmo humanizado, mas sua travessia nas telas terminou após a via-crúcis de “Logan” (2017), alforriando seus colegas de letra X para um espetáculo cinematográfico sem a necessidade de ossos de adamantium. Ilíada mutante, Ilíada de um tempo em crise com o conceito clássico de heroísmo, “X-Men: Fênix Negra”, um exercício narrativo arrebatador no jogo com a dinâmica da tensão, é rebento do que poder-se-ia entender como sendo o legado nº 1 da cultura digital pra dramaturgia audiovisual: o conceito de meta-cinema. Um conceito que vem da onipresença do pop em nossas retinas, como baliza de valores morais. Um conceito aqui retrabalhado por um diretor estreante.
Produtor prolífico, indicado ao Oscar por “Perdido em Marte” (2015), o inglês Simon Kinberg, cineasta de primeira viagem em longas-metragens, assumiu a direção do sétimo (e dito último) filme da franquia “X-Men” (2000-2019), consagrada com uma arrecadação comercial estimada em US$ 2,8 bilhões, com a tarefa de dar vida a uma das mais populares sagas da história dos quadrinhos: “A Fênix Negra” (1980). Com desenho de John Byrne e roteiro de Chris Claremont, a história de como a mutante psiônica Jean Grey se transforma, após ser possuída por uma energia demiúrgica, modificou os códigos de escrita das HQs, a partir de uma mistura do épico com o existencialismo, sempre à luz da questão da lealdade. Esta última palavra, lealdade, que sempre foi objeto de estudo nos filmes “X”, desde o primeiro, dirigido há 19 anos por Bryan Singer, alcança aqui sua metafísica mais lírica, sob o comando meticuloso de Kinberg. Apesar de um começo trôpego, quase sem ritmo, num lugar comum de aventura no espaço, o mais recente capítulo da jornada das X-Women e dos Homens-X em prol da tolerância arrebata o espectador pela maneira sinuosa como seu realizador, mesmo sem muita experiência nesse ofício, administra o suspense. É uma administração que valoriza toda a argamassa marvete que vem dos gibis dos anos 1980, mesmo sem alguns dos heróis originais (nada de Colossus ou de Wolverine), e que se afina com os pleitos de inclusão e empoderamento dos novos tempos. E tem em si o diferencial de magma de contar com um Michael Fassbender mais inspirado do que de costume, uma vez mais sob o elmo de Magneto, o mestre do magnestismo. Que falta faz Hugh Jackman com Fassbender em cena? Nenhuma.
Na fotografia do italiano Mauro Fiore (“Avatar”) temos uma conexão telúrica com o real nas cenas de perseguição e de luta: não é uma farra de CGI e, sim, uma equilibrada mistura de fantasia e humanidade num visual saturado por sombras e chiaroscuros. A trilha sonora de Hans Zimmer (“Dunkirk”) tempera o resto com especiarias épicas que evocam a música de Basil Poledouris (1945–2006) em “RoboCop” (1987). Ou seja: há sinestesia.
Mas há aspectos a serem decantados nesta narrativa que assume como eixo a bagunça no coração de Jean Grey (a ótima Sophie Turner), depois do contágio: o encontro com a força estelar chamada Fênix potencializa suas inquietações, levando a poderosa paranormal a dar lugar a uma personalidade maléfica. A vilania, contudo, não fica nela (dados os conflitos de consciência que tem), e sim em Vuk, um ser alienígena que almeja o controle da tal Fênix e rouba para si o corpo de uma terrena… no caso o de uma vítrea Jessica Chastain. É ela quem vai quizilar o culto que os X-Men do Professor Charles Xavier (James McAvoy, em plenitude de sua maturidade) fazem à harmonia.
Entre os pontos de decantação, há o fato, discreto, de que, no original, em Inglês, o título do filme, “Dark Phoenix”, não usa o selo “X-Men” (que entrou na tradução brasileira: “X-Men: Fênix Negra”). Suprimir o nome é um sinal de desapego, como se houvesse o interesse por uma ruptura com a tradição: com a venda dos estúdios 20th Century Fox à Disney, tudo deve mudar na fraquia. Estima-se que seu tom sombrio vá ser o primeiro sacrifício dessa imolação comercial, decretando o fim de uma era que só começou pelo empenho do diretor Richard Donner, o midas por trás de “Máquina Mortífera” (1997) e do “Superman” de 1978. Foi ele quem deu à Fox a ideia de filmar a rotina da Escola para Jovens Superdotados do Professor Xavier, estimulado pelo sucesso do desenho animado deles, de 1992 (aqui chegado só em 94). Foi a mulher do quase nonagenário Richard, a produtora Lauren Shuler Donner, quem deu forma (e rentabilidade) à cinessérie, nela imprimindo um pleito inclusivo antirracismo, que rendeu pelo menos duas obras-primas: o segundo longa, de 2003, e “Primeira Classe” (2011). Mas é hora de mudanças.
Filhos do Átomo, os discípulos de Charles Xavier, criados nas HQs por Stan Lee em 1963, tornaram-se cinema como Filhos da Geração DVD. A partir do final dos anos 1990, quando a tecnologia informática permitiu o advento das bolachinhas chamadas de Digital Versatile Disc, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconômico, que nos permitiu não apenas acesso a cópias, por exemplo, de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919, mas também a toda uma fortuna crítica (mais contemporânea) sobre ela: os chamado extras. Diferentes do que se viveu na era VHS, todo DVD era um casamento de entretenimento com aula de História, o que alfabetizou uma nova linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma percepção de que a realidade – do Presente e do Passado, sobretudo – é mediatizada, ou seja, existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. Nossa ideia da Chicago dos gângsters não é a Chicago dos documentos, calcada em fatos: nossa Chicago é a de Brian De Palma em “Os Intocáveis”. Ou seja… verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, ou seja, uma meta-vida, onde imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si. E o novo X-Men é uma delas. Das melhores.
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O que a práxis do simulacro produziu foi um meta-cinema. Veja, por exemplo, o caso de alguns de seus maiores artesões. Pedro Almodóvar (“Fale com Ela”) e Wong Kar-Wai (“Amor à Flor da Pele”) criaram com base em seu mergulho em mestres do cinema e do folhetim (Vincente Minelli e Douglas Sirk, sobretudo) uma ideia de meta-melodrama, ou seja, uma reflexão sobre os sofrimentos do querer calcados não em registros do Real, mas em noções de amar, sofrer, perder e reconquistar que o Cinema ensinou a eles. Já Quentin Jerome Tarantino (“Bastardos Inglórios”) passou os últimos anos dedicado à lapidação do que podemos chamar de meta-melodrama: os geniais “Django Livre” (2012) e “Os Oito Odiados” (2015) não são apreensões reais de questões do Oeste “de verdade”, mas sim do Oeste de papelão que Hollywood e os spaghetti italianos nos legaram. São “mentirinhas” erguidas sobre “mentirinhas”, ficção da ficção. Simulacros.
Embora não tenha – ainda – o peso destes cineastas, Kinberg dá ao canto de cisne dos X-Men a instância do meta: não o meta-quadrinho, mas o meta-filme. Por um significativo tempo de sua duração de 1h53 minutos, “X-Men: Fênix Negra” é mais um thriller de viradas vertiginosas sobre responsabilidades do que um filme de super-herói clássico. E o talento de Sophie Turner é essencial para isso. Temos uma mulher fraturada, em busca de si mesmo. Só que essa fratura esbanja destruição por onde passa. E temos um terrorista sem nada a perder… só o quinhão recém-esculpido de sua humanidade… no caso, Magneto, à cata dela, por vingança, uma revanche que deve ser conhecida na telona. Fassbender, numa atuação magistral, dá a seu personagem uma dimensão trágica shakespeariana, digna da despedida de uma série de longas que redefiniu a cultura pop nas telas.
Atenção para a ótima Kota Eberhardt, que vive Selene, a namoradinha de Magneto. É uma aparição que promete.
No Brasil, Alexandre Marconato dubla Fassbender, dando sempre um show nas versões brasileiras de “X-Men”. Já Sophie Turner ganha a voz de Gabriela Medeiros.