RODRIGO FONSECA
Esgotam-se num piscar de olhos os ingressos para as projeções de “Tár” na Berlinale, que confiou a seu retratista oficial Jens Koch a tarefa de fotografar sua estrela, uma radiante Cate Blanchett, para um painel de fotos disponibilizado na ala de entrada da sala de exibição de seu Palast, o centro oficial do festival germânico. Festival que concluiu mal sua seleção competitiva deste ano, na manhã desta sexta-feira, com a projeção de “Till The End Of The Night”, drama noir de tintas policiais e CEP alemão, pilotado por Christoph Hochhäusler. É um caso de “quero ser Fassbinder”, cheio de alusões (acidentais) ao legado do mestre do melodrama, conhecido por “Lili Marlene” (1981) e outras joias. Numa cena queer fassbinderiana, o filme se afoga no fel ao narrar a luta de um cozinheiro, Robert (Timocin Ziegler, excessivo), para salvar o amor de sua vida, a ex-presidiária Leni (Thea Ehre), da cilada criminosa armada na ligação dela com o submundo das drogas, quando tentava transicionar, de modo a pagar uma operação de implante de silicone. A incapacidade de Robert em lidar bem com a mudança física de Leni, por quem ele se apaixonou quando ela ainda tinha uma identidade social masculina, chamando-se Leonard, garante a esse thriller ultrarromântica uma rica camada de discussão sobre transfobia e aceitação. Mas um roteiro emperrado, que não se decide entre sua dimensão policialesca e sua natureza de crônica afetiva, freia o que se candidatava a ser um sólido projeto de análise comportamental do benquerer no mundo contemporâneo. Já “Tár”, exibido aqui em sessões hors-concours, é um acerto pleno em sua triagem de comportamentos dissonantes.
Indicado a 238 prêmios (entre os quais, o Oscar de Melhor Filme) desde sua passagem pelo Festival de Veneza, em setembro, “Tár” saiu do Lido, a terra das gôndolas, com a láurea de Melhor Interpretação para Cate. Neste início de ano, brigando por espectadores em circuitos comerciais como o do Brasil, o longa encontrou um lugar de honra pra si na Berlinale, com direito a uma sessão de gala na presença de sua estrela. Favorita à estatueta de Melhor Atriz da Academia de Hollywood, a ser entregue no dia 12 de março, a australiana de 53 anos virou poesia no clique de Jens Koch. É pena o Festival de Berlim ainda não ter reunido em livro as fotos que ele tira. A de Blanchett é exuberante, assim como é a interpretação dela, no papel controverso de Lydia Tár.
Sua personagem, uma regente aclamada, é de uma coragem singular no enfrentamento dos pudores intelectuais que ousam dar a Bach um diapasão menor na partitura da História, por questões de “cancelamento”. É destemida também na hora de encarar quem faz bullying com sua filha, aluna do ensino fundamental, ainda que o faça sem medir a idade de seus adversários – a maioria, crianças. É intrépida e sexualmente voraz. Nesse seu jeitão peculiar, a personagem central do longa-metragem de Todd Field (de “Pecados Íntimos”) conseguiu inscrever seu nome no rol de regentes essenciais às filarmônicas contemporâneas e se tornou a primeira mulher a liderar a Orquestra Filarmônica de Berlim – na ficção. Daí sua participação no festival germânico ser essencial, ainda que fora de concurso, embora estima-se que ela vá participar da cerimônia de entrega do Urso de Ouro, no sábado, cujo júri é presidido pela também atriz Kristen Stewart, de quem é amiga. Cerimônia que deve ter belos dois desenhos animados asiáticos entre seus vencedores: o japonês “Suzume”, de Makoto Shinkai, e o chinês “Art Gallery 1994”, de Liu Jian.
Na telona, esse ar de trator de Lydia, que passa por cima de todo e qualquer empecilho, fez com que abusasse de seus poderes e desrespeitasse emoções alheias. Fantasmas de suas desmesuras e de seus supostos crimes vão eclodir – e nos chocar – ao longo dos 158 mesmerizantes minutos de “Tár”, uma das apostas mais quentes para o Oscar 2023, até o de Melhor Filme, que consagra – uma vez mais – o prestígio de La Blanchett. Trata-se de uma das intérpretes mais vigorosas do nosso tempo, que já presidiu júris em Cannes (em 2018, com Kristen a seu lado) e em Veneza (em 2020), cujo festival deu a ela, em setembro, o troféu Copa Volpi de Melhor Interpretação pela figura de Lydia. Ela recebeu ainda o Globo de Ouro por sua magistral tradução de uma artista em implosão. Espera-se que a Berlinale possa dar uma salva de aplausos a ela, numa projeção especial do longa. Um longa que repagina sua trajetória de aclamação, coroada com uma bilheteria de US$ 15 milhões.
Foi em 1998 que Cate despontou para o estrelato, com “Elizabeth”. Ganhou, na sequência, de 2001 a 2003, espaço de honra na trilogia neozelandesa “O Senhor dos Anéis”, como a elfa Galadriel. Em 2005, conquistou seu primeiro Oscar, de Melhor Coadjuvante, ao reviver os feitos da diva hollywoodiana Katherine Hepburn em “O Aviador”, de Martin Scorsese. Foi filmada por múltiplas vozes autorais nos anos que se seguiram, como Wes Anderson, Ridley Scott, Alejandro González Iñárritu e Todd Haynes, que arrancou dela um devir Bob Dylan em “I’m Not There”, em 2007. Há dez anos, ela brilhou ao lado de Alec Baldwin e Sally Hawkins no que muitos consideram seu melhor filme, “Blue Jasmine”, pelo qual ganhou seu segundo Oscar, agora num papel protagonista.
Entre os filmes que mais e melhor machucaram corações nesta Berlinale, agora em sua reta final, destaque o .doc italiano “Laggiù Qualcuno Mi Ama”, de Mario Martone. É um estudo comovente sobre a importância que o ator Massimo Troisi, indicado ao Oscar por “O Carteiro e o Poeta” (1994), teve para o cinema europeu. Nascido nos arredores de Nápoles e morto em Óstia, aos 41 anos, na primeira metade da década de 1990, por complicações cardíacas, Troisi foi um ator brilhante, que utilizada a simplicidade aparente como disfarce para o improviso. Martone mostra que a relevância de Massimo para a depuração do audiovisual italiano nos anos 1980 se estende à experiências dele como realizador, com um espírito cronista que pode ser conferido em “Ricomincio Da Tre”, de 1981.