RODRIGO FONSECA
É um ganho inestimável para o teatro carioca – por razões simbólicas e políticas – a notícia de que “Pasolini no Deserto da Alma” tenha renovado uma temporada que seria encerrada no último domingo, dia 4. Regressa no dia 16/2, para permanecer até 4 de março, fazendo do Glauce Rocha, no Centro, a casamata de sua guerra simbólica. O desempenho infalível (entre a ferocidade e a ternura) de Maurício Silveira, no papel central, vivendo o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini (1922-1975), comove olhares e instiga reflexões. Ele atua sob uma iluminação bruxuleante (precisa). A cada palavra, torna-se o aríete com o qual espetáculo de Francis Mayer abre caminhos para a consagração. Só a escolha de “Iron Man”, de Ozzy Osbourne, como música de abertura – traduzindo a essência férrea do multirartista que foi inimigo jurado do fascismo – já assegura excelência ao experimento memorialista de Mayer.
Empático ao proletariado sobre todas as coisas, Pasolini tem sua intimidade explorada no texto escrito e dirigido pelo idealizador de montagens como de “Ângela Maria – Lady Crooner” e “Cazuza – Jogado A Teus Pés”. Apoiado na esgrima fina de Silveira com a palavra (e com os silêncios), Mayer revive a peleja incessante do realizador de “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964) pela livre expressão e recria toda a sua luta para fazer da arte um espaço de transgressão. Fala de seus amores e recorda os percalços que marcaram sua obra até ele ser assassinado aos 53 anos, na praia de Óstia, deixando um legado cinematográfico coerente com o credo sociológico do neorrealismo de sua Itália natal. Um dos melhores filmes dele, “As Mil e Uma Noites”, ganhador do Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 1974, pode ser visto hoje na Amazon Prime, e há um filme sobre sua visita ao Rio de Janeiro, o coruscante “Celebrazione”, de Luiz Carlos Lacerda (o Bigode), esperando um merecido espaço em tela.

O realizador italiano Pier Paolo Pasolini emplacou cults como “Teorema”

Seus livros também podem ser encontrados e comprados na internet, como “Amado Meu” (publicado postumamente há 42 anos). Está à venda uma antologia de suas poesias editadas pela Cosac & Naify. Tem ainda uma garbosa coletânea da Editora 34 de seus “Escritos Corsários”, com textos publicados na imprensa italiana entre 1973 e 1975, discutindo os movimentos estudantis de 1968, a decadência da Igreja Católica e as relações entre governo e máfia na Itália.
As múltiplas façanhas estéticas do realizador de “Pocilga” (1969) e “Teorema” (1968) são revisitadas por Mayer a partir de uma estrutura narrativa confessional, ao qual o dramaturgo ensaia (e cumpre bem) uma conversa de Pasolini com o público, em tom de desabafo. Num rasga-coração devastador, Silveira regurgita pérolas como “Paraíso é um projeto de que de Deus desistiu”. Os relacionamentos do cineasta são retratados no texto a partir do trato com dois amores: Ninetto Davoli e Giuseppe Pelosi, encarnados por Léo San e Diego Rosa. Rose Scalco entra em cena em dois papéis, numa atuação madura e potente.
Impressiona o poder de concisão de Mayer no jorro de tantas brutalidades, de tantas poéticas, de tantas transcendências. É espetáculo que nos vale de autoanálise, retratando as moléstias de uma sociedade que fabrica intolerâncias. Ao mesmo tempo, evoca a máxima sagrada de Jean Anoilh (1910-1987), autor de “O Viajante Sem Bagagem”, segundo a qual: “Existe o amor, é claro; e existe a vida, sua inimiga”. Ao propor o inventário das cicatrizes de Pasolini, Mayer expõe inimizades que não são apenas dele, mas, de toda a gente que acredita no altruísmo.