Rodrigo Fonseca
Perdemos de Agnès Varda (1928-2019). O cinema está de luto pela morte da diretora, que partiu esta manhã, em decorrência de um câncer de mama, deixando como legado 54 produções incluindo “As duas faces da felicidade” (Prêmio Especial do Júri no Festival de Berlim de 1965) e “Os renegados” (Leão de Ouro em Veneza, em 1985). A melhor forma de driblar a dor é celebrar a memória de uma cineasta pautada pela afirmação do Feminino é dedicar o máximo de atenção possível às mulheres realizadoras da atualidade, como Patty Jenkins. Foi ela quem dirigiu “Mulher-Maravilha” (“Wonder Woman”, 2017), que a HBO exibe nesta sexta, às 18h40. A bilheteria do filme chegou a US$ 821 milhões. Com um trabalho exuberante de Gal Gadot (Diana Prince / Maravilha), o longa conta com um roteiro estruturado e sem discurso sexista que joga os homens em segundo plano, pois a figura de Steve Trevor (Chris Pine) surge com importância na trama, formando uma dupla que vai além da questão do par romântico.
Sente-se um perfume de “O Resgate do Soldado Ryan” (1998) num canto do farfalhante Mulher-Maravilha… seu canto mais terno e vivo, no qual todas as dúvidas acerca de Gal Gadot (como atriz eficiente e transcendente) caem por terra. Embora sempre que se fale da obra-prima de Spielberg (no âmbito da guerra) a primeira citação costume ser referente à icônica sequência da batalha na Normandia, a passagem mais potente daquele cult, em termos de dramaturgia, é o trecho no qual o capitão vivido por Tom Hanks revela para sua tropa que era um professor de Redação e não um matador. Ali, há um sopro de desconserto, no qual os heróis caem do pedestal e experimentam o desamparo, sem máscaras. Há um trecho na nova aventura da Princesa das Amazonas, criada por William Moulton Marston em 1941, na qual essa mesma sensação se faz sentir, impregnando o semblante da super-heroína a partir olhar de Gadot: o trecho no qual ela experimenta a felicidade e a gratidão de um grupo de aldeões ao qual acabou de salvar. Em cada um deles, há mais do que reverência: há uma centelha de conforto, de pertencimento. Uma centelha expressa pela diretora Patty Jenkins na tela com um filtro neorrealista, de melodrama social, de reflexão sobre a inclusão.
Tem neorrealismo ali porque Patty – conhecida pelo patológico “Monster – Desejo Assassino” (2003) – é uma diretora com muito a dizer sobre fraturas existenciais de figuras em busca de pertença, de um lugar que as acolham. A Princesa Diana de Gal é alguém assim: precisa buscar uma relação especular que lhe dê segurança, porto. A jornada para debelar o Deus Ares, rival dos deuses apolíneos, pode ser um caminho para essa zona de conforto. E o abraço do piloto Steve Trevor (vivido com elegância por Chris Pine) também pode significar um abrigo. Isso porque Patty fez uma trama pautada pela delicadeza na qual todos os gêneros têm lugar. É o próprio Trevor quem dá a dica ao expor que a Maldade da raça humana não é uma dádiva de Ares, mas sim uma questão de escolha e de natureza. Foi uma lição que Agnès nos ensinou há muito tempo…