RODRIGO FONSECA
Com estreia marcada para 27 de setembro na Suécia, estreando de cantinho em cantinho na Europa toda, para fazer pressão nos votantes do Oscar com CEP no Velho Mundo, “Dor e Glória”, o novo Almodóvar, vai integrar a seleta do 67º Festival de San Sebastián, que começa nesta sexta, na Espanha. A projeção do longa-metragem em terras bascas se alinha com um tributo à atriz Penélope Cruz. Tributo este que conta ainda com a projeção do divertido “Wasp Network”, que Rodrigo Teixeira produziu.

Num papo com uma amiga, confrontado com a pergunta “Se não vai mais escrever nem filmar, o que você vai fazer?”, o cineasta Salvador Mallo, protagonista de “Dor e Glória”, talhado de um mármore reluzente chamado Antonio Banderas, responde o que pode: “Viver, suponho”. É um desabafo franco, sem muito espaço para digressões ou para metáforas que inflem de glacê um bolo saboroso em sua (aparente) franciscana simplicidade de ingredientes, como só Pedro Almodóvar sabe assar. Na esteira de uma fervorosa acolhida no Festival de Cannes, a saga de Mallo brota como estandarte de equilíbrio a flamular entre os dois hemisférios da obra do diretor espanhol, aqui em momento de apogeu numa espécie (indireta) de autobiografia. Existia o Almodóvar de excessos furiosos, na navalha da chanchada, como o de “Áta-me” (1989) e de “Maus hábitos” (1983). E existia o Almodóvar dos excessos cinéfilos folhetinescos, no transbordamento de querências e carências, como o de “Carne trêmula” (1997) e de “Fale com ela” (Oscar de melhor roteiro, em 2003). Agora, há um caminho do meio, um equilíbrio de cascos de centauro entre esses dois modos de estar na tela, com paixão em estado líquido, em ebulição. Logo, seu novo filme é carnaval.
Devastador é a palavra para definir a volta do realizador de “Tudo sobre minha mãe” (1999) às salas de projeção, com seu melhor filme em quase duas décadas, coroado em Cannes com a láurea de melhor trilha sonora para o compositor Alberto Iglesias e com o prêmio de melhor ator dado a Banderas – merecidíssimo. Fotografada com um colorido berrante por José Luis Alcaine, esta trama trata do ocaso (e posterior redenção) de Salvador Mallo (papel de um grisalho e inspiradíssimo Banderas), que, cansado da vida, agrilhoado à solidão, acossado por dores da espinha e por uma doença gástrica (similar a um engasgo), solta-se em inércia por dias vazios de sentido e de afazeres.
Cada engasgo de Mallo parece traduzir a incapacidade absoluta de ele digerir as lacunas que não foram preenchidas em sua relação com um ator do passado (o caudaloso Asier Etxeandia), com o namorado de juventude (Leonardo Sbaraglia) e com as expectativas de sua mãe (Julieta Serrano). É o engasgo de quem ainda precisa dizer algo que não foi dito. Ou filmar o que não se filmou. Por isso “Dor e glória” parece a autópsia de um corpo vivo, por exumar um cadáver que ainda não sucumbiu ao Tempo ou a degradação de si mesmo. No roteiro, Almodóvar faz a dramaturgia se esgarçar por caminhos inusitados, incorporando até chapas ortopédicas (em forma de animação) em sua narrativa, saudado pela revista “Cahiers du Cinéma” como um dos acontecimentos cinéfilos de 2019. Entre distrações, doses de heroína, caminhadas inertes (um tanto parecidas com a do cineasta Guido Contini, de Daniel Day-Lewis em “Nine”) e reinações em sua própria angústia, Mallo faz uma evasão até antigamente, onde esbarra com sua mãe mais moça, encarnada por uma divinal Penélope Cruz. Talvez seja no ontem, naquilo que para Almodóvar (só nele… e no olhar encantado da gente) é futuro do pretérito e não a mais que perfeita ilusão de “já se foi”, resida uma saída. A fagulha que possa incendiar a fogueira Mallo.

Sabe-se que a fogueira Almodóvar já ardeu com mais continuidade n’outros tempos, não só os tempos de sua mocidade, mas tempos de menos caretice no mundo, que, hoje, encontra-se na Idade Média quando se fala em desejo e em corpo. Talvez por isso, “Dor e glória” pareça uma reação, um basta, uma resposta desesperada. Uma resposta em forma de “esta é minha vida”. Mas, há que se ter cautela nisso, pois Almodóvar afirmou em Cannes, em 2016: “Jamais vou permitir uma biografia minha, pois a história de minha vida está dividida entre cada um dos filmes que filmei”. É uma cautela que se relativiza quando se lembra de Fellini, a dizer: “Assim como toda pérola é a autobiografia da ostra, todo filme é a biografia de seu diretor”.
Mas há um passo além na relação especular entre autor e obra aqui. Até roupas de Pedro foram usadas em “Dor e Glória” como modelo do vestuário de Salvador, um cineasta cheio de crises em sua vida amorosa, em sua relação com as drogas e em sua saúde. Ele busca a paz com o astro de seu primeiro filme, que acaba de ser desenterrado para uma exibição em uma cinemateca espanhola.

Lançado em março na Espanha, o longa-metragem foi relacionado pelo próprio Pedro a “Má educação” (2004) e “A lei do desejo” (1987), como se fosse parte de uma trilogia do eu, uma tríade do masculino emasculado. “Dolor y Gloria” pode ser um bom exemplar do chamado almodrama (termo de Caetano Veloso), uma releitura folhetinesca dos afetos a partir de parâmetros que não são da realidade e sim do legado histórico do melodrama. “Julieta”, que ele levou ao festival francês em 2016, já era um exemplo disso.
Há quem classifique o filão de metamelodrama. Esse rico verbete é parte das pesquisas de dramaturgia feita pelo professor José Carvalho (considerado o mais prestigiado teórico sobre roteiro no Brasil, que leciona como escrever para cinema e TV no Rio e em São Paulo na Oficina Roteiraria [http://www.roteiraria.com.br/]). Com base nas reflexões antropológicas do americano David Bordwell e nos ensaios geopolíticos do português João Maria Mendes, Carvalho consolidou essa expressão a partir da ideia de que o realizador de “Áta-me” (1989) cria seu universo com base no tecido visual “vivo” derivado do melodrama clássico e de suas releituras modernas, de Douglas Sirk a Rainer W. Fassbinder. Beirando a perfeição, “Dor e glória” há de comover, há de incomodar e há de se firmar como um dos melhores filmes deste ano e um dos melhores momentos de seu realizador. Vivo e vivaz.

Estrelado por Shirley Cruz, a Gláucia da novela “Bom Sucesso”, por José Loreto e por Débora Nascimento, além de um elenco de talentos egressos de periferias do RJ, o filme “Pacificado”, filmado em solo carioca pelo texano Paxton Winters, vai representar o Brasil na competição pela Concha de Ouro do Festival de San Sebastián, na Espanha. Consagrado há seis décadas como uma das mostras cinematográficas de maior prestígio do mundo (ao lado de Cannes, Veneza, Berlim, Roterdã e Locarno), o evento, no País Basco, no norte espanhol, na fronteira com a França, vai de 20 a 28 de setembro, incluindo esse longa de DNA brasileiro entre seus 17 concorrentes. Entre os produtores está o diretor nova-iorquino Darren Aronofsky, responsável por sucessos como “Cisne Negro” (2010) e “O lutador” (Leão de Ouro de 2008). Na trama, que foi gestada numa troca entre Winters e a população do Morro dos Prazeres, uma menina de 13 anos tenta reestabelecer seu vínculo afetivo com o pai, um ex-presidiário.

Entre os filmes que entraram em disputa no festival espanhol deste ano, merecem destaque prévio: “Lhamo and Skalbe”, de Sonthar Gyal, da China; “Patrick”, de Gonçalo Waddington (Portugal); “Proxima”, de Alice Winocour; “Rocks”, de Sarah Gavron (Reino Unido); e “The other lamb”, de Małgorzata Szumowska (Polônia – Irlanda). A direção de San Sebastián já havia divulgado parte de suas pepitas douradas. A competição já havia anunciado atrações antes, com destaque para a presença do ator e diretor James Franco como um de seus chamarizes. Dois anos depois de conquistar a Concha de Ouro com “O Artista do Desastre”, o astro americano vai voltar à seleção competitiva da cidade basca com o esperado “Zeroville”, comédia sobre a Hollywood de 1969. Concorrem com ele produções inéditas pilotadas por Louise Archambault, Guillaume Nicloux, José Luis Torres Leiva, Ina Weisse, Adilkhan Yerzhanov e David Zonana. É Franco quem protagoniza seu novo exercício autoral por trás das câmeras, numa investigação sobre a indústria de cinema dos EUA há 50 anos. Ele vive Vikar, um arquiteto que acaba sendo tragado pelos estúdios. Seth Rogen e Will Ferrel estão em seu elenco.

Fora da competição principal, vai ter ainda um batidão do que se viu de melhor na Berlinale e na Croisette, começando por “Les Misérables”, thriller social que deu ao francês de origem maliana Ladj Ly o Prêmio do Júri cannoise, em empate com o pernambucano “Bacurau”. Nele, três policiais enfrentam uma rebelião dos moradores de um subúrbio majoritariamente negro de Paris em retaliação a uma agressão contra um menino daquela periferia. Esse enfrentamento marca um levante do povo contra uma instituição de controle estatal.
De Cannes, foram trazidos ainda o novo Ken Loach (“Sorry We Missed You”) e a comédia de tons assistencialistas e motivacionais “Hors Norme”, de Eric Toledano e Olivier Nakache (a dupla de “Intocáveis”). De Berlim veio o comovente drama chinês “So long, my son”, de Wang Xiaoshuai, que traça um paralelo entre as transformações sociais da China e o período de 30 anos de luto de um casal, atomizado pela perda de um filho. Na capital alemã, em fevereiro, o longa conquistou os Ursos de Prata de melhor atriz e ator, dados a Yong Mei e Wang Jingchun.

Costa-Gavras, papa do thriller político, consagrado por sucessos como “Z” (1969), vai ganhar um prêmio honorário pelo conjunto de sua carreira, com a exibição de “Adults in the room”, seu exercício autoral mais recente. O projeto é uma adaptação do livro homônimo de Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, sobre a falência de sua nação. Valeria Golino e Ulrich Tukur são os protagonistas do longa, que se concentra em tramitações políticas e judiciais de 2015 para travar a bancarrota das finanças gregas.