RODRIGO FONSECA
Na contramão de um modelo hollywoodiano de se fazer recriações de época com planos abertos, panorâmicas e luz “lavada”, apolínea, “As Polacas” trilha uma rota intimista, de “filme de gabinete”, mais turva, quase num registro de chiaroscuro, com efeito de tons de marrom e vermelhos terrígenos. O Novo Mundo que é ofertado às estrangeiras que aqui chegaram ao fim da I Guerra, segundo o longa-metragem, não era o Eldorado prometido nos folcores mas, sim, uma Babel de intestinos amolecidos, febres e constipações. O painel histórico corajosamente fotografado por Louise Botkay (numa luz nada domesticada, elegante em sua dimensão mais penumbrosa) é de alarme mas também é de louvor a sororidade, no que ela tem de mais universal. João Jardim, seu diretor, parece optar por uma estética de cinema clássico, porém, algo de moderno, que lembra o cinema recente de Marco Bellocchio (vide “Rapito” e “Bom Dia, Noite”), pede passagem pela forma como o cineasta fita (e finta) o passado. Conta com o som e a fúria do James Mason paulista Caco Ciocler, num papel odioso que ele pluraliza em porosas camadas de inquietação existencial.
Documentarista indicado ao Oscar pelo belo “Lixo Extraordinário” (feito a três com Karen Harley e Lucy Walker), Jardim tem uma retidão infalível em “As Polacas”: seu foco é o calvário de judias que vieram para as Américas à cata de subsistência digna e trombaram com a exploração sexual. Caco vive o cafetão hebreu Tzvi, que abusa de jovens em estado de errância. Há uma delas, Rebeca, bem defendida por Valentina Herszage (forte candidata ao Redentor de Melhor Atriz), que despe a cota de malha farpada daquele mundo de alcova e submissão. Um mundo que, plasticamente, na telona, lembra o visual de “L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância” (2011), de Bertrand Bonello.
Quem constrói a sinuosa dramaturgia (calçada em silêncios, cumplicidades, desejos represados e brutalidade) é um time de roteiristas formado por Teresa Frota, Jaqueline Vargas e Flávio Araújo, sob as aparas finais do “maestro” George Moura (de “O Grande Circo Místico”). Moura e Jardim fizeram “Getúlio”, de 2014, juntos. Voltam a se unir sob a produção de Iafa Britz, que escuda o longa com uma preciosa pesquisa sobre a diáspora judaica.
Em concurso pelo troféu Redentor de Melhor Filme de Ficção de 2023, “As Polacas” evita como pode a objetificação e a superexposição gráfica nas agressões em coitos. Sa trama se ambienta em 1917, quando Rebeca (o papel de Valentina) pisa aqui. Fugindo da fome, do antissemitismo e da guerra na Polônia, ela chega ao Rio de Janeiro pronta para recomeçar a vida. Ao contrário das promessas de felicidade, a realidade encontrada na cidade é muito diferente. Ao descobrir que o marido morreu, a moça acaba se tornando refém de uma rede de prostituição e tráfico de mulheres judias, chefiada pelo impiedoso Tzvi, que Caco interpreta numa medida de força similar à de Othon Bastos como o Paulo Honório de “São Bernardo” (1974). Ao ser obrigada a transgredir suas próprias crenças, Rebeca encontra aliadas que vivem o mesmo drama e, juntas, lutam por liberdade, na criação de um cemitério no bairro de Inhaúma onde podem ser enterradas a partir de um ritual bento, numa purificação.
Sem se deixar perder em firulas de época, o longa se detém sobre a aliança das garotas de programa que se forma nesse RJ dos anos 1910 a fim de debelar o jugo sexista. A figura cheia de mistérios da prostitura vivida por Dora Freind (até agora, a melhor coadjuvante da Première Brasil) finca os pés do filme em seu debate sobre a união de angústias femininas. O trecho documental nos minutos finais arrebata o olhar pelo acabamento de sua montagem. Vale lembrar que o Brasil já passeou por esse tema em “Sonho Tropicais” (2001), de André Sturm, e em “As Jovens Polacas” (2019), de Alex Levy-Heller, que se baseia no cult literário de Esther Largman. Nos EUA, há “Era Uma Vez Em Nova York” (2013), de James Gray.